Há gente que confunde monarquia com absolutismo, ditadura, tirania ou despotismo, considerando-a a antítese da democracia. Mas as monarquias constitucionais podem ser mais democráticas do que muitas repúblicas que nasceram tortas. O episódio que marcou, em nosso país, a mudança de um regime para o outro é um exemplo.
A grande maioria das repúblicas nas Américas emergiu da revolta ao regime colonialista imposto por seus "donos" europeus. Mas o Brasil já tinha superado definitivamente esse patamar desde 1822. A motivação para o golpe militar foi bem outra.
* * * * *
 |
Imagem: Wikipedia |
Dona Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon nasceu no Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1846. Primeira na linha sucessória, recebeu desde a infância uma educação rigorosa, visando prepará-la para as responsabilidades futuras. Sua irmã Leopoldina, segunda na linha de sucessão, recebeu o mesmo tratamento. As instruções de D. Pedro II eram claras:
"O caráter de qualquer das princesas deve ser formado tal como convém a senhoras que poderão ter que dirigir o governo constitucional de um Império como o Brasil. A instrução não deve diferir da que se dá aos homens, combinada com a do outro sexo: mas de modo que não sofra a primeira. Convirá conformar-se aos regulamentos da instrução pública primária e secundária. Poderão sofrer castigos, e quando forem leves, sem meu conhecimento prévio."
Os companheiros de folguedos infantis das princesas incluíam crianças negras. Esse clima liberal certamente influenciou seu futuro apoio ao movimento abolicionista.
* * * * *
 |
Isabel e Gastão de Orléans:
Troca de noivos. |
Numa época em que interesses dinásticos e alianças políticas eram decisivos nos matrimônios de príncipes e princesas, as negociações levaram à escolha de Luís Augusto, duque de Saxe-Coburgo-Gota, para casar-se com Isabel e de Gastão de Orléans, conde d'Eu, para Leopoldina. Eram sobrinhos-netos do rei Leopoldo I da Bélgica e sobrinhos de D. Fernando II de Portugal, além de primos da rainha Vitória da Inglaterra.
Mas aconteceu o imprevisível: quando os dois jovens vieram ao Brasil, cada um se encantou com a prometida do outro, o mesmo acontecendo com as princesas. Estas pediram aos pais que a troca fosse realizada, obtendo o consentimento imediato. Em 18 de setembro de 1864 o príncipe Gastão de Orléans pediu a mão da Princesa Imperial do Brasil.
* * * * *
Isabel dava grande importância à educação pública. Na Fala do Trono de 1º de fevereiro de 1877, quando Regente, disse:
"A instrução pública continua a merecer do governo a maior solicitude. Foram criadas no município da corte escolas de segundo grau, e as normais, destinadas a preparar professores para o ensino primário de ambos os sexos, terão de ser brevemente inauguradas. Nas províncias este ramo de serviço apresenta sensível progresso, limitado, porém pela falta de meios de que podem dispor. Se os melhoramentos materiais por elas empreendidas têm recebido vosso auxílio, justificada será qualquer despesa que autorizeis para coadjuvar esse grande elemento de civilização."
Desde o início, a princesa uniu-se aos partidários da abolição da escravatura, mesmo quando simpatizantes do movimento republicano. Financiava com meios próprios a alforria de escravos e apoiava a comunidade abolicionista conhecida como Quilombo do Leblon, em cuja chácara se cultivavam camélias brancas, símbolo do abolicionismo. Também costumava asilar fugitivos em sua residência em Petrópolis. Nas anotações de André Rebouças, tesoureiro do movimento abolicionista, consta que no dia 4 de maio de 1888, “almoçaram no Palácio Imperial 14 africanos fugidos das Fazendas circunvizinhas de Petrópolis”. Às vésperas da abolição os fugitivos acolhidos pela princesa já ultrapassavam o milhar.
* * * * *
Quando Isabel assumiu a regência pela terceira vez, em 1887, o clima era tenso. Os poderosos fazendeiros escravocratas manipulavam na imprensa a opinião pública, lançando dúvidas sobre a capacidade de uma mulher para governar o país e alegando que a abolição seria a bancarrota do império, pois as fazendas de café e açúcar dependiam do braço escravo. Citando a Wikipedia: O negro era contado, medido e pesado e os juristas dos escravocratas criaram a tese jurídica de que o escravo era "propriedade" do senhor de engenho e, portanto, estavam sob amparo da Constituição, que garantia o "direito de propriedade".
Na Fala do Trono de 1888, Isabel dissera: "Não hesitarei em apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura." O Gabinete Conservador, com o Barão de Cotegipe, defendia a manutenção da escravidão. Isabel aproveitou a brecha provocada por um incidente envolvendo partidários de ambos os lados e demitiu o ministério, nomeando o conselheiro abolicionista João Alfredo para o cargo de Chefe do Conselho de Ministros (cargo equivalente a primeiro-ministro).
Em 13 de maio de 1888, um domingo, foi posto em votação um projeto de abolição plena (sim, pasmem! Naquela época o Congresso se reunia aos sábados e domingos quando o assunto era relevante). Isabel, confiante na aprovação, desceu de Petrópolis pronta para assinar a Lei Áurea. Seu marido advertiu: "Não assine, Isabel, pode ser o fim da Monarquia." Ela respondeu, decidida: "É agora ou nunca!"
Testemunha Joaquim Nabuco: "No dia em que a Princesa Imperial se decidiu ao seu grande golpe de humanidade, sabia tudo o que arriscava. A raça que ia libertar não tinha para lhe dar senão o seu sangue, e ela não o queria nunca para cimentar o trono de seu filho. A classe proprietária ameaçava passar-se toda para a República, seu pai parecia estar moribundo em Milão, era provável a mudança de reino durante a crise, e ela não hesitou..."
A elite cafeeira não aceitaria a abolição passivamente. Cotegipe, ao cumprimentar a princesa, vaticinou sarcástico: "Vossa Alteza libertou uma raça, mas perdeu o trono". Ela retrucou altivamente: "Mil tronos eu tivesse, mil tronos eu daria para libertar os escravos do Brasil".
Em 28 de setembro, pouco antes do golpe republicano, Isabel recebeu do Papa Leão XIII a comenda da Rosa de Ouro, em reconhecimento pela Abolição da Escravatura.
* * * * *
Um ano e meio depois de testemunhar o júbilo popular com a abolição da escravatura, Isabel veria a monarquia no Brasil ser extinta. Insuflados pelos radicais positivistas, pela maçonaria e apoiados pelos fazendeiros, os militares depuseram o gabinete do Visconde de Ouro Preto e instauraram uma ditadura republicana. Ressentimentos pessoais do líder Benjamin Constant contra o monarca foram fator decisivo para deflagrar a quartelada que ensejou a proclamação da República. Os chamados "ideais republicanos", na verdade, foram meros pretextos para justificar a insurreição que mudou a forma de Governo em 1889. Não faltaram as conspirações tenebrosas: sabe-se que o major Frederico Solón espalhou o boato de que Dom Pedro II decretara a prisão de Deodoro e Benjamin Constant, notícia caluniosa que precipitou o golpe.
Isabel, com 43 anos de idade, seguiu com sua família para o exílio, na madrugada de 17 de novembro de 1889, depois de ter sido expedida, na véspera, uma intimação pelo mesmo Frederico Solón.
O embarque para o exílio aconteceu numa madrugada chuvosa e de mar agitado. Dom Pedro II, doente, embarcou amparado por seu médico particular, o Dr. Mota Maia, que com ele seguiu viagem. Depois de quase meio século chegava o fim dramático de um governo próspero e pacífico.
Isabel chorava. O almirante Tamandaré quis opor resistência, mas Dom Pedro II proibiu qualquer reação. E o Brasil inaugurou a República fechando o Congresso, censurando a imprensa, perseguindo e banindo jornalistas e praticando outros atos de autoritarismo. Os bens da família imperial foram sumariamente confiscados. A inflação disparou e a economia entrou em crise.
* * * * *
Dois anos depois, D. Pedro II morria em Paris e Isabel assumiu o título de Imperatriz de jure do Brasil - D. Isabel I. Citando novamente a Wikipedia:
"Apesar da dor do exílio Dona Isabel teve uma velhice tranquila, instalada no castelo da família em Eu, na Normandia, propriedade de Gastão de Orléans (Castelo d'Eu). Rodeada pelos filhos e netos fez de sua casa uma embaixada informal do Brasil. Recebia brasileiros de passagem, ajudou o jovem Alberto Santos-Dumont quando desenvolvia suas invenções. Passou os últimos anos da vida com dificuldades de locomoção. Em 1920 teve a felicidade de saber que a lei que bania a Família Imperial do Brasil havia sido revogada pelo Presidente Epitácio Pessoa.
Exilada, espoliada, com a saúde frágil, extremamente abalada pela morte de dois de seus filhos (Antônio, em 1918, e Luís, em 1920), a princesa Isabel faleceu em 14 de novembro de 1921, em Eu, França. Foi sepultada no cemitério local, de onde seria trasladada em 6 de julho de 1953 para um jazigo no Mausoléu Imperial da Catedral de Petrópolis."
* * * * *
Três meses antes do advento da República, Isabel escreveu esta carta (que se encontra no Memorial Visconde de Mauá) ao Visconde de Santa Vitória:
"11 de agosto de 1889 – Paço Isabel Corte
Caro Snr. Visconde de Santa Victória
Fui informada por papai que me collocou a par da intenção e do envio dos fundos de seo Banco em forma de doação como indenização aos ex-escravos libertos em 13 de Maio do anno passado, e o sigilo que o Snr. pidio ao prezidente do gabinete para não provocar maior reacção violenta dos escravocratas. Deus nos proteja si os escravocratas e os militares saibam deste nosso negócio pois seria o fim do actual governo e mesmo do Império e da caza de Bragança no Brazil. Nosso amigo Nabuco, além dos Snres. Rebouças, Patrocínio e Dantas, poderão dar auxílio a partir do dia 20 de Novembro quando as Camaras se reunirem para a posse da nova Legislatura. Com o apoio dos novos deputados e os amigos fiéis de papai no Senado será possível realizar as mudanças que sonho para o Brazil!
Com os fundos doados pelo Snr. teremos oportunidade de collocar estes ex-escravos, agora livres, em terras suas proprias trabalhando na agricultura e na pecuária e dellas tirando seos proprios proventos.
Fiquei mais sentida ao saber por papai que esta doação significou mais de 2/3 da venda dos seos bens, o que demonstra o amor devotado do Snr. pelo Brazil. Deus proteja o Snr. e todo a sua família para sempre!
Foi comovente a queda do Banco Mauá em 1878 e a forma honrada e proba porém infeliz, que o Snr. e seo estimado sócio, o grande Visconde de Mauá aceitaram a derrocada, segundo papai tecida pelos ingleses de forma desonesta e corrupta. A queda do Snr. Mauá significou huma grande derrota para o nosso Brazil!
Mas não fiquemos mais no passado, pois o futuro nos será promissor, se os republicanos e escravocratas nos permitirem sonhar mais hum pouco. Pois as mudanças que tenho em mente como o senhor já sabe, vão além da liberação dos captivos. Quero agora dedicar-me a libertar as mulheres dos grilhões do captiveiro domestico, e isto será possível através do Sufrágio Feminino! Si a mulher pode reinar também pode votar!
Agradeço vossa ajuda de todo meo coração e que Deos o abençoe!
Mando minhas saudações a Madame la Vicomtesse de Santa Vitória e toda a família.
Muito d. coração
ISABEL"
* * * * *
Em outubro de 2011 foi oficialmente aberto o processo de beatificação da princesa, entregue ao cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, D. Orani João Tempesta a pedido de monarquistas brasileiros. A justificativa para o pedido foi a de Isabel ter demonstrado durante toda sua vida uma profunda fé católica, além de ter sido a responsável pela libertação dos escravos no Brasil. O cardeal D. Orani prometeu levar o caso à arquidiocese de Paris, uma vez que a princesa viveu seus últimos anos na França. A Igreja investigará os testemunhos de várias pessoas que dizem ter sido curadas por orações feitas à princesa.
* * * * *
Não julguem meus amigos e leitores que eu seja monarquista ou anti-republicano. Acho mesmo que a restauração da monarquia no Brasil seria um retrocesso político. Vamos ter que desentortar e remendar o que nasceu torto e esfarrapado. Mas não posso me furtar a fazer as seguintes indagações:
1- Numa monarquia constitucional bem estruturada os futuros governantes são educados desde o berço para exercer seus misteres com probidade e justiça. E na República?
2- Se a monarquia houvesse subsistido, qual seria hoje o "status" do negro brasileiro e seus descendentes?
Gostaria, sim, que houvesse sido reservado um cantinho do Brasil onde Isabel e a Casa de Bragança pudessem transformar seus ideais em realidade. Quem sabe um Principado dos Palmares, nas atuais terras de Alagoas, em homenagem a Zumbi... e teríamos talvez a oportunidade de ler as apimentadas "Crônicas da Marquesa de Arapiraca", comparando a situação próspera dos afrodescendentes do principado com a dos negros e "pardos" da grande república vizinha, atrelados a um confuso sistema de cotas. Que massa!
Minha principal referência para esta postagem foi
http://pt.wikipedia.org/wiki/Isabel_do_Brasil
* * * * *
Um ano atrás, inspirado por um texto particularmente forte de uma querida amiga, escrevi:
ABOLIÇÃO
Não seja um quantum de status ou de dinheiro
O guarda ou o porteiro
Que te negue admissão.
Não seja um rito de respeito a um Ser mais alto
Que te leve ao assalto
De outra religião.
Não seja a cor da tua pele impedimento
Para viver um momento
De amor ou de afeição.
Não seja a cor dos olhos teus, ou dos cabelos,
Empecilho aos teus anelos,
Algemas do coração.
Não seja nunca uma benesse ofertada
Como pílula dourada
Motivo de rendição.
Batalha a boa luta, sempre a boa lida!
Estuda! Cresce na vida!
Usa a força da razão!
Liberta-te! Vive tua vida plena!
Com alma alegre e serena
Abre as portas da prisão!
Canta bem forte teu futuro luminoso,
Teu destino glorioso,
Faz a tua abolição!
Em 16/04/2011
às seis da manhã
por Rodolfo Barcellos
à vista de um texto de
Simone Fernandes.
Para finalizar, parabéns a todas as mães - as imperatrizes, rainhas e princesas, verdadeiras regentes dos lares do Brasil e do mundo.
Niterói, maio de 2012
Rodolfo Barcellos