quarta-feira, 2 de maio de 2012

Divisões

     No próximo dia 6 comemora-se, no Brasil, o Dia do Matemático. Mas para que homenagear esse vilão detestado - o professor de Matemática - que inventa armadilhas malignas nas questões das provas e parece ter um prazer sádico em ver seus alunos desesperados? Bem, a resposta talvez se resuma a um nome árabe: Malba Tahan, autor de um livro chamado O Homem que Calculava.
     O livro conta a história de Beremiz Samir, um matemático persa, que viaja de sua aldeia natal até Bagdá. No decorrer da jornada, usa seus conhecimentos para resolver diversos problemas do dia-a-dia, e acaba conquistando um cargo de confiança de um vizir e o amor da filha de um poeta da corte do Califa Al-Motacém. O autor é Ali Iezid Izz-Edin Ibn Salim Hank Malba Tahan, ou simplesmente Malba Tahan, natural de Muzalit, na atual Arábia Saudita.
     Na verdade, esse autor árabe nunca existiu, exceto como heterônimo do professor Júlio César de Mello e Souza, genial matemático brasileiro, que detestava os métodos de ensino vigentes na época. Ele deu vida a Malba Tahan para poder publicar incógnito diversos contos onde os problemas matemáticos, lógicos, filosóficos e até religiosos eram apresentados sob um aspecto lúdico, atrativo e compreensível. Deu verossimilhança ao pseudo-autor árabe através de seu profundo conhecimento da cultura árabe – berço da matemática moderna – e da criação de um segundo personagem fictício: Breno de Alencar Bianco, o suposto tradutor das obras de Malba Tahan.
     Malba Tahan publicou ao todo 56 livros. O mais famoso é justamente O Homem que Calculava, traduzido para diversos idiomas. Sob seu verdadeiro nome, Mello e Souza publicou cerca de 50 outros livros.
     Nasceu no Rio de Janeiro, em 6 de maio de 1895. Lecionou Matemática no Colégio Pedro II, onde alcançou fama por seus métodos pouco ortodoxos. Costumava dizer que os professores de matemática eram sádicos, que se compraziam em inventar dificuldades para os alunos. Seus discípulos o adoravam e seus colegas o olhavam com reservas. Morreu em Recife, no dia 18 de junho de 1974, sem nunca ter posto os pés na Arábia. O dia de seu nascimento é celebrado no Brasil como o Dia do Matemático.
     Transcrevo a seguir uma versão simplificada do Capítulo IV de O Homem que Calculava, onde se pode apreciar não só o domínio da Matemática e o talento literário do autor, mas também sua postura ética e o valor didático do seu texto.
*   *   *   *   *
Pena que estas não sejam de ouro...
     No nosso trajeto para Bagdá encontramos, caído na estrada, um viajante ferido. Contou-nos que sua caravana, ao regressar de Bássora, fora atacada e saqueada por bandidos nômades do deserto. Ele, o chefe, só se salvara por se ter fingido de morto entre os cadáveres dos seus escravos. E exortou-nos:
     - Dai-me algo para comer! Estou morrendo de fome!
     - Tenho de resto três pães - eu disse.
     - Trago ainda cinco! - afirmou meu amigo Beremiz.
     - Pois, meus amigos, se quiserem dividir comigo esses oito pães, prometo-vos pagá-los com oito moedas de ouro!
     Não carecíamos de pagamento, mas o rico cheique insistiu. E assim prosseguimos viagem, acomodando-nos como possível nos lombos de nossos dois únicos camelos.
     Alcançamos Bagdá na tarde do dia seguinte, encontrando logo um rico cortejo chefiado pelo poderoso vizir Ibrahim Maluf. Ao avistar-nos, o vizir exclamou:
     - Salém Nasair, meu amigo! Que te aconteceu? Por que estás assim maltrapilho, em companhia de dois desconhecidos?
     O cheique narrou em minúcias o acontecido, fazendo-nos os maiores elogios.
     O vizir sacou oito moedas de ouro de sua bolsa, e disse:
     - Paga sem demora tua dívida, meu amigo. Tenho pressa de levar-te ao palácio do Califa, para relatar-lhe esta nova afronta que os bandidos praticaram dentro de nossas fronteiras.
     O rico Salém Nasair disse-nos, então:
     - Vou deixar-vos, meus amigos. Antes, porém, desejo agradecer-vos, cumprindo minha palavra. Tu, Beremiz, que partilhaste cinco pães, receberás cinco moedas; e teu amigo, que contribuiu com três pães, ficará com as três moedas restantes.
     - Perdão, senhor - retorquiu Beremiz. - Essa divisão é muito simples mas não é matematicamente correta. Se eu dei cinco pães, devo receber sete moedas; e meu companheiro, que repartiu três pães, deve receber apenas uma!
     O vizir interveio, intrigado:
     - Por Maomé! ó, estrangeiro! Como justificar essa forma disparatada de se pagar oito pães com oito moedas? Por que queres receber sete moedas por teus cinco pães? E por que caberá a teu companheiro, que deu três pães, uma única moeda?
     - Explico-me, senhor vizir. Quando tínhamos fome, durante a jornada, repartíamos um pão em três pedaços, cabendo um pedaço a cada um de nós. Se eu dei cinco pães, dei quinze pedaços, e meu companheiro, com seus três pães, contribuiu com nove pedaços. Dos quinze pedaços que dei, comi oito; dei portanto sete; e meu companheiro também comeu oito dos seus nove pedaços, tendo dado apenas um. Os sete que eu dei, mais um que foi dado pelo meu amigo, formaram os oito pedaços que alimentaram o ilustre cheique. É justo, portanto, que eu receba sete moedas e meu companheiro apenas uma.
     Não havia o que discutir. Era lógica, perfeita e irrespondível a demonstração apresentada pelo matemático. E o vizir ordenou que lhe fossem entregues sete moedas, pois eu só teria direito a uma.
     Mas Beremiz, tomando delicadamente as oito moedas, declarou:
     - Esta divisão de sete moedas para mim e uma para meu amigo é, conforme provei, matematicamente exata, mas não é perfeita aos olhos de Deus.
     E dividiu as moedas em duas partes iguais, dando-me quatro moedas e guardando as outras quatro para si.
     O vizir exclamou:
     - Mac Allah! Esse jovem, além de parecer-me um sábio e habilíssimo nos cálculos e na Aritmética, é bom para o amigo e generoso para o companheiro. Tomo-o, hoje mesmo, para meu secretário!
     Beremiz inclinou-se e respondeu:
     - Poderoso vizir, vejo que acabais de fazer com 32 vocábulos, com um total de 143 letras, o maior elogio que ouvi em minha vida, e eu, para agradecer-vos, sou forçado a empregar 64 palavras, nas quais figuram nada menos de 286 letras. O dobro, precisamente! Que Allah vos abençoe e vos proteja!
*   *   *   *   *
     Outro famoso conto de Malba Tahan foi publicado aqui, há um ano, em Os 35 camelos (basta clicar no link, se quiser lê-lo).
     Aproveito a oportunidade para antecipar às mães de Portugal, da África lusófona e de onde mais seja celebrado no próximo domingo meus desejos de um feliz Dia das Mães. Para chegar aqui no Brasil, demorará mais uma semana...


Niterói, maio de 2012
Rodolfo Barcellos

7 comentários:

  1. Muito bom, Malba Tahan fez parte da minha juventude assim com Monteiro Lobato e Edgar Rice Burroughs. Gosto demais dessas proposições que ele faz, a minha predileta é a dos camelos, só que prefiro com 17 camelos, e não com 35. Abraços e parabéns, JAIR.
    PS - A maldita verificação de palavras finalmente foi retirada de meu blogue.

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  2. Malba Tahan também esteve em minha época escolar, mas nunca o associei à matemática (rss), matéria da qual não gostava. Seus textos criativos, belos e fundamentados nos encantavam.
    Confesso que não sabia ser ele heterônimo de Julio Cesar de Mello e Souza, ou talvez tenha apagado essa informação da lembrança, eis que há muito não o leio.
    O texto que transcreveu me foi apresentado, à época, com um sentido que não envolvia números, mas sapiência, no colégio de freiras.
    Você não precisa das moedas de ouro, já as tem nas palavras e no coração, deixando várias em nossos blogs, para serem guardadas em cofres.

    Grande beijo!

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  3. Eu concordo com a afirmação de que os professores de Matemática são um tanto sádico, gostam de demonstrar o quanto estão acima do saber alheio. Talvez esse meu ponto de vista se deva ao verdadeiro pânico que essa intrépida matéria sempre me causou.

    Muito bom ler, através de ti, esse carioca das arábias, cheio da malemolência matemática.

    Muito bom estar aqui, toda vida.
    Beijo, meu querido.

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  4. Que bom que nos trouxestes mais um pouco do Malba Tahan.
    A princípio, eu o julgava árabe, mas depois descobri com orgulho ser um brasileiro...
    Tem outras histórias-lições muito boas como esta.
    Abraços, Barcellos!

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  5. Aprendi por aqui hoje..

    Minha Bruna ama matemática..
    Prestou para engenharia..entrou em duas faculdades mas esta fazendo cursinho...não eram as faculdades que ela queria.
    Eu aqui toda orgulhosa....não perdi a oportunidade de contar.

    Parabéns sempre..

    Um bj

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  6. Meu lindo, matemática é meu terror rs,vim deixar um beijo!

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  7. Li algumas resenhas sobre esse livro tempos atrás .e o considero imperdível para os amantes da matemática. por ser enxadrista ,eu achei interessante a parte que fala sobre o jogo de xadrez . e ,logicamente , boa parte do livro.

    Barcellos !
    O aviso que aparecia sobre malware
    no biografia ,não apareceu mais .
    fiquei sem entender o motivo do aparecimento ,e do repentino desaparecimento.

    De qualquer forma eu te agradeço pela vistoria . pela pronta gentileza em me ajudar.

    Um grande abraço !

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