sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Ordem e Bagunça

   Estive pesquisando alguns tipos de imagens na Web. Imagens de espaços e de objetos que têm a ver com o nosso dia-a-dia. Móveis, veículos, prédios etc. Muitas fotos belíssimas... mas depois de algum tempo, uma sensação de mesmice e artificialidade foi crescendo, e eu comecei a perceber que quase todas as figuras tinham uma coisa em comum.
   Melhor dizendo: não tinham uma coisa - sinais de vida... não necessariamente pessoas, mas sinais delas...
   Ah, se eu pudesse ditar leis! Fotos de jardim teriam uma bicicleta jogada na grama, uma bola encostada no muro ou um cachorro enrodilhado à sombra de algum arbusto. Veículos seriam mostrados ao lado de uma placa indicativa de "Homens trabalhando" e residências mostrariam em primeiro plano uma caixa de correio com algumas cartas mal enfiadas na fresta, com um envelope em destaque - talvez com a figura de dois corações atravessados por uma flecha...
   Tem gente que gosta das coisas bem arrumadinhas. Eu prefiro um pouco de desorganização - não muita. E tenho inveja de certas pessoas que se sentem à vontade em pleno caos - material e existencial. Minha referência é uma irmã que pendurou uma placa-mensagem no cômodo principal de sua casa (misto de sala de jantar, saleta de TV, quarto de brinquedo, oficina de artesanato, lavatório, depósito e biblioteca): "Deus abençoe essa bagunça". É capaz de a placa sumir e ela nem perceber...

   A foto acima é de um sofá lá da minha casa. A única "produção" que fiz para tirá-la foi colocar o teclado, que estava numa outra mesa. E não me importa que o sofá quase não apareça. Adivinhem se todos lá em casa gostam de música?

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Confiteor

   Cheguei de orelha murcha, ressabiado. Ele, como sempre, já sabia de tudo; e como sempre, fingiu que não sabia de nada. Ficou só me olhando, em silêncio, como quem tem todo o tempo do mundo - coisa que tem, mesmo...
   Finalmente, criei coragem:
   - Fiz besteira grossa...
   Ele permaneceu em silêncio.
   - Foi um comentário que fiz, no "blog" de uma amiga... mas você já sabe de tudo, não é?
   - É... e sei também que você precisa desabafar, para aliviar esse peso que está sentindo. O nome disso é "remorso".
   Contei-lhe tudo, tintim por tintim. Ao terminar, falei:
   - Não sei o que deu em mim... você sabe que eu não sou disso.
   - Você está passando por uma fase difícil. Perdeu recentemente a sua esposa, e na véspera do acontecido seu filho havia viajado em busca de uma vida que é importante para ele, mas que o levará por lugares distantes, onde você nem sempre poderá acompanhá-lo. Seus dois outros filhos já enveredaram por caminhos parecidos, e você está se sentindo solitário.
   Em nossos muitos bate-papos, não me lembro de outro discurso tão longo, por parte dele. E ele continuou, voltando à sua tática de desentendido:
   - Você não testemunhou recentemente o assédio de um indivíduo mal-intencionado ao "blog" de uma outra amiga?
   - É...
   - Não ajudou-a a livrar-se desse assédio?
   - Foi... com o auxílio de um amigo comum...
   - Não tem visto tantos abusos que acontecem na Internet?
   - Sempre.
   - E com essa mania de fuçar os cantinhos dos amigos você não tem conseguido surpreendê-los de maneira agradável?
   - Sim, mas não devia ter fuçado nesse - não sem pedir licença.
   - Foi aí que o inimigo atacou. Ele é insidioso, paciente e traiçoeiro, e não dorme nunca. O que é que você pensou quando viu  os textos?
   - Pensei: "Esta menina está se expondo muito".
   - Pré-julgamento. Já baixou a guarda nessa. E depois?
   - Depois... pensei "Acho que consigo fazê-la tomar mais cuidado."
   - Arrogância. Golpe certeiro do inimigo. E?...
   - E me veio à cabeça que um bom susto serviria de aviso...
   - E assim você se expôs ao golpe fatal. Ele derrubou você usando seu sentimento de solidão, seu instinto de proteção e suas lembranças de interatividade agradável com seus amigos. Já pediu desculpas?
   - Já...
   - E a "menina" já te desculpou?
   Tive que rir com o acento irônico que ele pôs em "menina"...
   - Já, sim...
   - Então você já cumpriu os dois primeiros passos pra se livrar do remorso: pedir perdão e recebê-lo.
   - E há um terceiro?
   - É este desabafo. Como está se sentindo?
   Perscrutei meu coração:
   - Bem mais leve - admiti. Escuta, posso publicar esse nosso papo no "Sete Ramos?"
   - Aprendeu, hein? - brincou ele. - Pode, sim. Mais alguma coisa?
   Fiquei com vontade de questioná-lo sobre as tragédias provocadas pela chuvas, mas lembrei-me do último bate-papo.
   - Só pra agradecer aquele anjo da guarda que você mandou pra me avisar... e já vou indo postar.
   - Vai comigo...

sábado, 22 de janeiro de 2011

Estudo em Mi Sustenido Maior

   Quando examinamos  um teclado musical vemos que ele se compõe de teclas brancas e pretas intercaladas. E para cada série de sete teclas brancas há apenas cinco pretas, ou seja, existem dois lugares onde "falta" a tecla preta.
   As sete teclas brancas produzem os sons correspondentes às notas dó, ré, mi, fá, sol, lá, si; a próxima branca é de novo (onde começa uma nova oitava, mais aguda).
   As teclas pretas são os semitons - as notas intermediárias entre as "brancas". São os chamados "sustenidos" da branca imediatamente anterior,  e na notação musical são indicadas pelo símbolo #. Uma escala completa, portanto, compreende doze notas:
Dó - dó# - ré - ré# - mi - fá - fá# - sol - sol# - lá - lá# - si.
   Entre o si final de uma oitava e o dó inicial da seguinte também não existe a tecla preta. Diz-se, portanto, que as notas mi# e si# não existem.
   Mas isso só é verdade nas escalas musicais chamadas temperadas, adotadas no século XVIII para padronizar dezenas de escalas de diferentes tipos. E em várias destas escalas havia, sim, sons correspondentes ao mi# - um pouco diferentes do fá, o mesmo acontecendo com o si#.
   A padronização fundiu os sustenidos com os bemóis das notas seguintes, facilitou a transposição de tons e abriu caminho para várias sub-escalas de inspiração regional. A chamada "Escala Nordestina" (descendente do modo grego mixolídio), típica dos baiões e outros ritmos do norte-nordeste, é uma dessas. Veja em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Escala_nordestina
 


   Assim, podemos afirmar que o tom de Mi sustenido existe - mas disfarçado na escala moderna sob as vestes do Fá. E eu quero cantar aqui um poema em Mi Sustenido Maior, tão bem disfarçado na letra quanto no tom musical:

   FORMA ENRUSTIDA, OU DISFARÇADA:
   "Seus pensamentos iam-se não se sabia pra onde, deixando por lá a sua memória frágil, que outrora sucumbira à tal doença traiçoeira, ladra de lembranças, usurpadora de vida alheia.
   Restaram-lhe os fragmentos como a compor uma pequena canção que vivia a entoar repetidamente. Cantava a irmã gêmea, os irmãos meninos, queridos e companheiros. Cantava o prazer de haver sido professora por trinta anos e ter cumprido dignamente essa missão. E cantava o marido, o gaúcho barrigudo, descendente de italianos, bigodes fartos se contrapondo à careca lustrosa."


   É fácil perceber que há uma poesia subjacente à prosa, uma "perda que não é perda", uma música suave que nos embala, um ritmo que nos leva a "cantar" em coro com a personagem. E não é difícil trazer essa poesia à tona:


FORMA OSTENSIVA, OU EXPLÍCITA:

Seus pensamentos se iam
não se sabia pra onde,
deixando lá a memória
que outrora sucumbira
à doença traiçoeira,
que usurpava as lembranças,
ladra da vida alheia.

Restaram-lhe os fragmentos
compondo a canção pequena
que vivia a entoar
e sempre a recomeçar;

Cantava a irmã gêmea,
E os irmãos pequeninos,
os seus saudosos meninos
queridos e companheiros.

Cantava o prazer dos anos
em que fora professora
e cumprira essa missão
Com toda a dignidade.

E cantava o marido,
o gaúcho barrigudo,
descendente de italianos,
a barriga proeminente
com a dela contrastando,
bigodes fartos e bastos
à calva se contrapondo.

   Aqui, a musicalidade, marcada pelo ritmo forte e sincopado, se sobrepõe à mera rima mecânica. Os leves ajustes no texto respeitaram-lhe a forma e principalmente a alma, e a poesia emergiu da prosa como uma borboleta que se liberta do casulo. E não ponham a culpa em mim: a borboleta já estava lá; eu só cutuquei o casulo. E o poema completo da Milene você pode conferir em Canção do Alegre Viver (esse título, por si só, já é um poema).

   NOTA IMPORTANTE: Quando me dispus a escrever esses últimos "posts", eu não tinha idéia de quão grande era minha ignorância sobre o assunto "música". Conforme pesquisava, minha admiração pelos musicistas em geral crescia exponencialmente, enquanto minha ignorância se reduzia às colheradinhas. Os que entendem do assunto perdoem qualquer impropriedade que possa ter escapado por entre meus dedos inábeis.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Estudo em Si Sustenido Maior

    Na data em que se comemora o aniversário da Cidade Maravilhosa, permitam que um carioca da gema, nascido em São Cristóvão, preste homenagem a uma das mais autênticas cariocas que já conheceu.
 
    ESTUDO EM SI SUSTENIDO MAIOR
    Dizem que o tom de Si sustenido não existe - ou que se confunde com o Dó. Mas essa confusão só acontece porque o Si sustenido se apresenta geralmente disfarçado. Quande se lhe tira o disfarce, ele aparece em toda a sua gloriosa grandeza, como fica demonstrado no seguinte poema:

    FORMA ENRUSTIDA

    "É por isso, minha gente, só por isso é que escrevo, que divulgo, que tento ajuntar mentes, artes, manifestações artísticas, porque a arte sempre me salvou, sempre me foi como uma mãe de seios fartos a saciar minha fome de tudo. Porque esse nada que vos escreve, só consegue ser melhor por causa dessa generosa mãe. Minha intenção é essa, receber, multiplicar, somar e dividir o tantinho que sei... se é que eu sei... Mas, sinto."


    Na forma enrustida, já são evidentes o sentimento e a alma que revestem a mensagem da autora, que aqui rejeita o dicurso empolado e pernóstico, cheio de soberba e de arrogância, vazio de conteúdo, tão comum aos literatos acadêmicos; e com termos chãos e plenos de significados expõe com simplicidade e beleza seu amor pelas artes em geral.

FORMA EXPLÍCITA

É por isso, só por isso,
Que escrevo, minhas gentes,
Que divulgo, que divulgo,
E que tento ajuntar mentes,
Manifestações de artes,
Que a arte sempre me salvou,
Foi-me a mãe de seios fartos,
Minha fome saciou.
E esse nada que escreve
Só consegue ser melhor
Sob as bênçãos dessa mãe;
Minha intenção é essa,
Receber, multiplicar,
Dividir, doar, somar
Esse  tantinho que sei...
Que sinto, se é que não sei...
    Para desnudar a poesia escondida sob o véu diáfano da bela prosa, ousei retocar-lhe levemente o figurino - sei que a autora me perdoará o atrevimento. Note que as alterações são mínimas, sempre na forma, nunca no conteúdo. E o que veio à tona - além do que já vimos?
    Métrica e rima impecáveis! Ritmo e música soberbos!
    E a autora ainda tem o desplante de dizer que escreve de besta, de besta...
    Ah, ia esquecendo. O nome dela é SIMONE, e você pode conhecê-la no BALAIO DA SI.


    E viva o meu Rio de Janeiro... ainda há esperança!

    NOTA IMPORTANTE: O mesmo fenômeno acontece com o tom de Mi sustenido. Aguardem para breve um estudo SI-MI-lar a respeito.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Stardust

   Fui chamá-la na sua alcova:
   - Vamos dar uma saidinha? Quero te apresentar a uns amigos novos...
   Ela abriu um sorriso encantador:
   - Vamos! Só preciso me arrumar!
   - Você está linda! Exatamente como na última vez que saímos.
   - Por isso mesmo. Não vou aparecer usando um modelito que todo mundo já conhece.
   Essas mulheres... que lógica há em mudar a aparência para conhecer novas pessoas?
   Ela pareceu adivinhar meus pensamentos:
   - Além disso, podemos encontrar quem já me conhece... olhe, enquanto eu tomo banho, chame o cabeleireiro, a manicure e a maquiadora. E vá escolhendo um vestido decente pra mim.
   Banhada e perfumada, cabelos belamente penteados, as unhas delicadamente pintadas, maquiagem suave e sedutora, vestido escolhido e ajustado, meias de seda pura, sapatos de salto agulha, brincos, colar, pulseira, anéis...
   Ela se visualisou no grande espelho e pediu-me para ajeitar infinitos detalhezinhos. Finalmente, perguntei:
   - Podemos ir?
   - Vamos! E pegou a minúscula carteira preta, recamada de inúmeros brilhantes pequeninos.
   Conduzi-a à garagem. Foi quando ela viu o presente do Tatto.
   - Carro novo? - ela perguntou, feliz e surpresa.
   - Novinho. Só pra você - menti. E abri-lhe galantemente a porta.
   Ela me deteve em meio ao gesto:
   - Preciso de um novo nome! Não gostei daquele apelido sem graça da última vez!
   Discutimos. Depois de algumas sugestões, ela aceitou "Stardust". E finalmente cliquei a tecla "Publicar postagem".
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   STARDUST
   Cada célula de nosso corpo tem seu ciclo de vida determinado. Os tecidos mais expostos aos agentes externos - pele e mucosas - se renovam em trinta dias ou menos. Já as células nervosas não se multiplicam - não sofrem mitose.
   Mas todas, sem exceção, absorvem nutrientes e expelem os rejeitos metabólicos resultantes de sua atividade biológica. Portanto, seja a nível celular, molecular ou mesmo atômico, nosso corpo está sempre trocando com o meio ambiente material orgânico - via respiração, alimentos e bebidas, urina, suor e fezes. E a Natureza se encarrega de reciclar tudo isso - mas sem alterar os átomos, com raríssimas exceções.
   E quase toda essa reciclagem é realizada dentro dos limites da biosfera. As moléculas e átomos que seu organismo expele hoje serão absorvidos por outros organismos amanhã. E vice-versa...
   Isso quer dizer que você não é exatamente a mesma pessoa que começou a ler este texto. Milhões de mudanças ocorreram em seu organismo nesse meio tempo. Não quero nem pensar nas mudanças que aconteceram no meu, desde que comecei a escrevê-lo...
   É talvez perturbador pensar que neste momento existem em nosso corpo átomos e moléculas que outrora fizeram parte de Hitler, Ghandi, Cleópatra, Shakespeare, Marylin Monroe, Átila, Jesus Cristo, Elizabeth da Áustria, Einstein... a lista não tem fim. Vai ver, é por isso que nós somos gente boa hoje, intolerantes amanhã, inteligentes agora e burros no minuto seguinte...
   Mas nós fazemos parte de um clube maior e temos também átomos que já foram de dinossauros extintos, protozoários microscópicos e plantas exóticas. E finalmente não podemos esquecer que tudo isso formou-se a partir de uma nebulosa planetária - de modo que somos também poeira de estrelas, como disse Carl Sagan...


   Afinal, quem somos nós hoje? Quem seremos amanhã? Parte da resposta está - talvez - em:
http://www.youtube.com/watch?v=aEwmX8yerWQ
   E não vamos nos esquecer - principalmente hoje - dos átomos da Princesa Isabel e dos escravos africanos. Eles também fazem parte de nós.


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   NOTA: A postagem original foi publicada no "Sete Ramos de Oliveira",  na quinta-feira, 13 de maio de 2010 - daí a frase que a fecha. Seu título era "Somos pó". E a trabalheira que me deu reformatar a danadinha me levou a escrever aquele "prólogo" inicial.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Déjà vu

QUOUSQUE TANDEM?

Estou cansado de reeditar este artigo, ano após ano!

Esta é a sétima edição!

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Depois da tempestade vem a enxurrada

Escrito em junho de 2005*, este artigo foi em grande parte inspirado pelos trágicos efeitos das tempestades daquele ano, não só no Brasil como no resto do planeta. Mais de quatro anos depois, nada mudou... ou mudou para pior.
* e reeditado, com adaptações, em 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010 (já neste blog).
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INUNDAÇÃO
Chuva, chuva, chuva. Lembrei-me dos aguaceiros que castigaram S. Paulo, Rio, Belo Horizonte... cidades grandes e pequenas pelo Brasil afora. Famílias que perderam tudo... vítimas fatais ... tristeza e prejuízos. Cobranças às autoridades, explicações e desculpas... e tudo se repete, ano após ano.
Dizem que o problema é falta de escoamento, por causa de bueiros entupidos e lixo acumulado nos canais. Besteira. Isso é jogar pra cima da população a responsabilidade pela incompetência dos engenheiros municipais e dos secretários de obras. Na verdade, a grande maioria dos problemas é causada pelo excesso de escoamento. Isso mesmo - excesso de escoamento. Você não acredita? Bem, deixa eu explicar.
As maiores inundações são causadas por chuvas torrenciais que causam uma precipitação pluviométrica (calma, já vou traduzir) de uns 200 milímetros, no máximo, em 24 horas. Isso quer dizer que, se não houvesse nenhum escoamento, se cada gota de chuva ficasse onde caiu, cada rua, ao fim das 24 horas de tempestade, teria apenas um palmo (200 mm) ou menos de água. Além disso, não haveria enxurradas, que são a principal causa de desabamentos e afogamentos. Em S. Paulo, o Tietê e o Pinheiros subiriam apenas 20 centímetros, assim como o canal do Mangue no Rio, e outros escoadouros.
Obviamente, os telhados também ficariam com seus 20 cm de água acumulados, assim como as calçadas, praças e jardins. Mas qualquer telhado bem feito resiste a uma pressão de 200 mm de água.
É claro que é impossível querer obrigar cada gota a ficar onde caiu (*); mas é perfeitamente possível controlar o escoamento de modo a reduzi-lo a um nível que evite os grandes problemas acima citados. A água demoraria um pouco mais a baixar - talvez dois ou três dias - mas a cidade e seus habitantes teriam trocado uma calamidade pública por uma inconveniência de consequências mínimas.
Portanto, Srs. Prefeitos, secretários e engenheiros, parem, por favor, de gastar nosso dinheiro aumentando o fluxo do escoamento pluvial. Tratem, isso sim de procurar meios de reduzi-lo e controlá-lo. Desde já, eleitores e cidadãos agradecem.


(*) Esse efeito pode ser observado nos lugares e épocas do ano onde cai neve, em vez de chuva. Cada "gota" - ou floco - permanece onde caiu, e os problemas maiores são causados pelo frio e pelo volume acumulado da precipitação (muito maior em forma de neve do que em forma líquida). Quando chega a primavera, o degelo é lento e o escoamento não causa maiores transtornos.
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Hoje, às vésperas do Ano Novo, as notícias dão conta de mais onze vítimas fatais das chuvas que castigam o Rio. Serão mais, talvez. Mas como controlar o fluxo do escoamento? Sugiro um estudo em quatro etapas:
1 - Identificar e mapear as "minibacias pluviais urbanas" - os canais naturais ou artificiais do escoamento, definindo seus "divisores de águas" (acho que isso já existe);
2 - Selecionar uma ou duas minibacias adequadas a um programa de controle de fluxo;
3 - Efetuar as obras públicas necessárias e incentivar os proprietários dos imóveis a adaptá-los ao programa. As áreas impermeáveis serão priorizadas;
4 - Aguardar a próxima época de chuvas torrencias, fazer o levantamento estatístico dos resultados, divulgá-los e partir para o abraço - ou para a reeleição.
As obras públicas e particulares necessárias seriam simplesmente a coleta da chuva através de calhas e canaletas, conduzindo o fluxo total a reservatórios apropriados, dos quais seria liberado o fluxo controlado. Um imóvel com área impermeável de 1.000 metros quadrados (um condomínio vertical de porte médio) necessitaria de um reservatório com capacidade para apenas 100 metros cúbicos de água para controlar um débito de 100 mm/dia. Os engenheiros sabem como fazer isso.
É claro que isso não é uma panacéia, e só se aplica na prática a áreas de alta concentração urbana e baixa permeabilidade. Mas imagino que um prefeito mais interessado nas próximas gerações, e menos nas próximas eleições (eu tenho uma imaginação delirante, às vezes) possa fazer alguma coisa a respeito.
Que tal as minibacias que deságuam na Praça da Bandeira, aqui no Rio?

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Adendo à edição de 2011: Desta vez tragédia foi maior e se concentrou em outras áreas, mas as causas continuam as mesmas: DESCASO CRIMINOSO DAS AUTORIDADES.
Onde os planos emergenciais? Onde o plano de coordenação da Defesa Civil com outros órgãos públicos? Cadê o combustível para os helicópteros? Médicos, paramédicos e enfermeiros, onde? Aliás... e os hospitais? Onde os há, que é dos leitos? Onde foram parar os equipamentos indispensáveis?
E, por favor... quantas vezes ainda terei que reeditar este artigo doloroso? Se nos primeiros anos o sentimento era de indignação este sentimento veio se transformando através dos anos: raiva, frustração, impotência, desilusão... mas nunca desesperança! Quando a esperança deixar de existir, eu pousarei minha pena impotente - nunca antes!

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ciúme

Imagem: Josephine Wall. Direitos reservados.


Desperto. E quando te vejo
Junto à janela, desejo
Beijar-te sem mais tardar;
Mas logo o sol te ilumina
E o ciúme me domina
  Ao ver o sol te beijar.

Mas então vens sorridente
Beijar-me um beijo tão quente
Que começo a desconfiar
Que o sol vem de fininho
Toda manhã, bem cedinho,
Para teu calor roubar.

Depois é a brisa que chega
E docemente entrega
Carinhos ao teu redor,
Afagando teus cabelos
Em movimentos tão belos
Que o ciúme vem maior.

Mas logo estás a meu lado
E teu corpo perfumado
Me leva a acreditar
Que a brisa te rouba odores
E aromas de tantas flores
Para o mundo perfumar.

Mais tarde no mar mergulhas
E eu volto a sentir agulhas
Na alma e no coração;
Pois o oceano te abraça
Com toda a malícia e graça
De uma imensa paixão.

Mas logo tu sais das águas
E me vens curar as mágoas
Com beijos de apaixonada;
E o sal nos teus lábios quentes
Diz que as ondas reverentes
Te roubaram quase nada.

À noite olhas cismada
Para a abóbada estrelada,
Mirando-a com tanto amor
Que o ciúme recrudesce
E em meu coração cresce
Com redobrado furor.

Mas logo após tu me fitas
Com estrelas infinitas
Brilhando no teu olhar;
E eu vejo então que a lua
E as estrelas são a tua
Dádiva a mim por te amar.

Hoje sei que o mundo imenso,
Com seu viver tão intenso,
Sem ti não seria nada;
E por isso às vezes penso
Que o ciúme é o incenso
Que eu acendo à minha amada.


Imagem: uso não comercial, conforme os termos do "site" da autora.  Ver: http://www.josephinewall.co.uk/licensing.html

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Colcha de retalhos

    Fiz uma poesia chamada "Ciúme". E, por bardo menor que seja, percebi mal e mal que ela se prestava a inúmeras metamorfoses.
   Sei que uns poucos dos meus amigos quererão inventar suas próprias composições poéticas. Alguém já disse que "fazer poesia é fácil; as palavras já estão todas no dicionário".
   Talvez seja muita pretensão de minha parte; mas gostaria de presentear a esses amigos - poetas leigos, versejadores diletantes, amantes das rimas - de alma mais lírica, as redondilhas misturadas que se seguem, para que os mais descolados possam combiná-las e modificá-las de modo a exprimir suas idéias em quadrinhas, tercetos ou mesmo um "hai-kai" - cortando e colando, costurando e espichando em busca do ritmo e da melodia desejados.
   Isso não é um desafio para reconstituir o poema original. Essa tarefa seria dificílima - eu acho - até mesmo para os excelentes poetas de nossa pequena comunidade blogosférica; é apenas uma oportunidade que se me apresentou de proporcionar aos amigos - aqueles que o quiserem - uma atividade quiçá diferente e recompensadora.
   O texto original está programado para ser publicado às 23:00 horas de amanhã - sexta-feira. E se até lá você compuser sua poesia, pequena e simples que seja, usando esse "banco de versos", pode assinar em baixo. Isso não é plágio: é talento. Pergunte a quem sabe...


Ao ver o sol te beijar,
Desperto. E quando te vejo,
Toda manhã, bem cedinho,
E eu volto a sentir agulhas
Que o ciúme vem maior..
Mas logo tu sais das águas
Pois o oceano te abraça
Em movimentos tão belos
Que o ciúme recrudesce
E o ciúme me domina
Com redobrado furor.
Afagando teus cabelos
Junto à janela, desejo
Que a brisa te rouba odores
De uma imensa paixão.
Que o sol vem de fininho
E docemente entrega
Brilhando no teu olhar;
E aromas de tantas flores
Com beijos de apaixonada;
Diz que as ondas reverentes
Para a abóbada estrelada,
Com seu viver tão intenso,
Mas logo estás a meu lado
Com estrelas infinitas;
À noite olhas cismada
Mas logo o sol te ilumina
E as estrelas são a tua
Dádiva a mim por te amar.
E o sal nos teus lábios quentes
Mas então vens sorridente
Beijar-te sem mais tardar;
Que eu acendo à minha amada.
E eu vejo então que a lua
Depois é a brisa que chega
E por isso às vezes penso
Dar-me um beijo tão quente
Que começo a desconfiar
E me vens curar as mágoas
Para teu calor roubar.
Carinhos ao teu redor,
Com toda a malícia e graça
Me leva a acreditar
Que o ciúme é o incenso
E teu corpo perfumado
Mais tarde no mar mergulhas
E em meu coração cresce
Na alma e no coração;
Te roubaram quase nada.
Hoje sei que o mundo imenso,
Mirando-a com tanto amor
Mas logo após tu me fitas
Sem ti não seria nada...

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Plágio


Cópia do DNA
   O plágio, muitas vezes considerado o vilão máximo da criação musical e literária, é usado por praticamente todos os poetas - desde os grandes vates universais aos simples bardos menores, como eu (ainda) me considero. E como instrumento de aprendizado e aperfeiçoamento, seu valor é precioso. Se você, que me lê, tem veleidades de cometer suas poesias, não tenha receio de plagiar - mas sempre indicando a fonte que inspirou seu plágio.
   E aqui está uma pequena amostra das inúmeras clonagens que eu - e outros - perpretamos...


Camões - Os Lusíadas:
As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana...

   Plágio meu:

As estirpes e gentes afamadas
Que do planalto altivo paulistano,
Por selvas nunca dantes desbravadas
Passaram muito além do Meridiano...


   Petrarca (1304-1374):
Questa anima gentil che si diparte,
Anzi tempo chiamata a l'altra vita,
Se lassuso è quanto esser de gradita,
Terrà del ciel la più beata parte.


   Camões (1524-1580), plagiando Petrarca:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na Terra sempre triste.

   E eu plagiei o plágio para dar as boas-vindas à minha primeira seguidora lusitana - a minha querida Amélia, a Alma Inquieta do blog "Estados de Alma" - no meu "post" de 19 de abril - "Lilienthal":

Alma minha, inquieta, que sorriste
A mim num beijo com sabor do Tejo,
Tornando alegre minha alma triste,
Bem-vinda sejas! Tudo te desejo.

   E aproveitei  o embalo para dar as acolhidas ao seu inseparável alter ego literário - o Sergio, do "El Puente" (Argentina):

E tu, que constróis pontes de amizade,
Vencendo léguas, anos e olvido,
Para aliviar meu peito tão sofrido,
Bem-vindo sejas! E fica à vontade!

   Pois não é que hoje, dia 12, ao fazer minha visita habitual à amiga Pat, de "Sincronicidadess",  deparei-me com um belo "Quintana"?! De imediato me inspirou um clone-comentário...



   Mário Quintana:
Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...
 

   Plágio meu:
Não exultes, por mais que te elogiem...
Serenamente julga a lisonja alheia.
Distinguirás, assim, aqueles que sorriem,
Dos que te cumprimentam com a boca cheia...

   Pois então... vamos plagiar e imitar os bons!

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Livro: O Jardim de Ossos

 O Jardim de Ossos (The Bone Garden) - Mistério e Suspense
Tess Gerritsen, 2007 - Trad. Alexandre Raposo
Editora Record - 1a. Edição, 2009 - 450 páginas

   Após um divórcio traumático, Julia está tentando reorganizar sua vida. Compra uma velha mansão nas cercanias de Boston e procura distrair-se preparando o terreno para um jardim, mas ao revolver a terra encontra um crânio humano.


   Ambientado no extremo nordeste dos Estados Unidos (Nova Inglaterra), num apertado espaço dividido entre Massachusetts e Maine, o enredo se desdobra em dois planos temporais, separados por dois séculos, quando Julia trava conhecimento com um obstinado escavador do passado, que guarda velhas cartas de família e recortes de jornais antigos.

    E os dois vão reconstituindo laboriosamente uma história épica e macabra, que envolve roubos de cadáveres destinados a sessões de dissecção, mortes de parturientes por infecção hospitalar e um assustador assassino que estripa vítima após vítima, enquanto uma jovem tenta proteger a filha da irmã morta contra misteriosos perseguidores cujas identidades e motivos são desconhecidos.
   Suspense e mistério de categoria, relembrando um pouco o estilo de Agatha Christie, é leitura estimulante para os apreciadores do gênero... desde que estejam dispostos a enfrentar a atmosfera mórbida, crua e realística que a autora - que trocou a medicina pela literatura - constrói magistralmente.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Inocência

INOCÊNCIA

Imagem: Josephine Wall (direitos reservados)
Lembro ainda aquele dia ensolarado
Em que tu me ofereceste a rendição;
Quando em vez de te fisgar eu fui fisgado
No teu jogo tão sutil de sedução.

Derrotei  tuas negaças,  teus receios,
Desnudei teus pensamentos indiscretos,
Conquistei os altos cumes dos teus seios,
Visitei os teus lugares mais secretos.

As mãos minhas escalaram róseos montes
E meus dedos deslizaram por ravinas;
Os meus beijos encontraram tuas fontes,
Meu desejo cavalgou pelas campinas.

Minha alma se perdeu em teus cabelos,
Minha voz em teus gemidos se esvaiu;
Meu abraço calou todos teus apelos
E o meu ser em teu ser se consumiu.

Explorei teus sentimentos mais profundos;
Meus sentidos no teu corpo se afogaram.
Descobri os quatro cantos de teus mundos,
Minhas pernas com as tuas se trançaram.

Invadi então teu templo mais sagrado
E prostrei-me ante o altar de teu prazer;
Oferendas lá depus de apaixonado,
Em  penhor de todo este meu querer.

E assim me despedi da adolescência
E ingressei num novo mundo sedutor;
Com o sexo me roubaste a inocência
E depois ma devolveste com o amor.

Ó tu, que me conduziste às alturas!
Ó tu, que me levaste às profundezas!
Ó tu, que me  trouxeste tais loucuras!
Ó tu, que me exorcisaste as tristezas!

Bendita sê! Bendita a dita minha,
Pois que em meu coração inda és rainha!


Imagem: uso não comercial, conforme os termos do "site" da autora.  Ver: http://www.josephinewall.co.uk/licensing.html

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Sexo

   Homens e mulheres podem sobreviver sem sexo, como indivíduos. Como espécie, não.
   E quando falamos em sobrevivência da espécie, estamos falando em evolução e seleção natural. Gostemos ou não, estamos falando de impulsos primitivos, de comportamentos atávicos, de instintos animais, de pulsões naturais.
   Sob a fina camada de verniz que chamamos de "comportamento civilizado" agitam-se motivações e compulsões que escapam ao nosso raciocínio lógico; e por não as compreendermos, muitas vezes as tememos. Mas de onde vêm esses impulsos?
   Nas tribos primitivas, a sobrevivência da espécie dependia, basicamente, dos seguintes fatores:
   a) sobrevivência dos indivíduos - pelo menos até à idade em que estivessem aptos a procriar. Daí  decorre, por seleção natural, o aprimoramento do instinto (preexistente) de proteção materno e dos costumes tribais de proteção aos infantes e adolescentes - e às gestantes.
   b) sobrevivência da tribo - caça, pesca e defesa contra inimigos, ou seja, atividades perigosas mas necessárias. Começa aí uma divisão natural das responsabilidades, cabendo às mulheres proteger as crianças, cuidar dos afazeres domésticos e atender às gestantes, enquanto os homens iam à caça ou à luta. Em certas tribos, a situação se invertia (tribos de amazonas); mas as leis inexoráveis da seleção natural restringiram fortemente essa linha evolutiva, pela redução da taxa de nascimentos devido à indisponibilidade de mulheres para as funções da maternidade.
   c) procriação seletiva - as tribos nas quais as mulheres preferiam para maridos os homens que se destacavam pela sua capacidade de lutar, alimentar e proteger a família (homens fortes, ágeis e previdentes), e os homens elegiam suas mulheres pela sua capacidade de gerar e criar filhos saudáveis (mulheres com ancas largas, que facilitam o parto sem complicações, e com seios fartos, capazes de fornecer leite em abundância) - essas tribos levavam, logicamente, vantagem sobre as demais. 


   Esses traços - proteção das crianças, divisão social de tarefas e escolha dos cônjuges por suas características favoráveis - não foram uma escolha consciente; foram se fixando à medida em que as tribos que os possuiam em maior grau eliminavam ou absorviam as demais, simplesmente por terem maiores chances de sobrevivência como grupo; e vemos assim que a seleção natural age não só sobre o fenótipo do ser vivo, mas também sobre sua vida social.
   Portanto, é perfeitamente natural que as mulheres de hoje se sintam atraídas pela força física, pelo poder, pela fama e pela riqueza; e também é perfeitamente natural que os homens modernos se sintam atraídos por mulheres de quadris largos e seios exuberantes, mesmo que não tenham consciência dos motivos dessa preferência - que parece ser geral. O meu amigo Jair ilustrou isso muito bem, no seu blog pensador, em
http://jairclopes.blogspot.com/2010/04/evolucao-nadegas-inteligencia.html

   Ao longo de milênios, estas características se consolidaram no inconsciente de homens e mulheres; e à pergunta da Milene - O que eles querem? - podemos responder: nem eles mesmos sabem - mas é para o bem de todos. Assim como o universo das emoções femininas, que os homens (e várias mulheres) não compreendem, também é para o bem geral da sociedade.
   Os rituais de namoro, noivado e casamento; as brincadeiras infantis (bonecas para as meninas e bolas para os meninos); as gangs e turmas de adolescentes; as festas, bailes e quermesses... a lista de atividades sociais ligadas ao instinto sexual não tem fim.
   Mas há efeitos colaterais desse processo de seleção natural que devem ser compreendidos e combatidos: a concentração de poder e renda, as guerras, os diversos tipos de discriminação (um gay não tinha perdão nas tribos primitivas - e até em muitas das "tribos" modernas), a intolerância e a maior parte das mazelas sociais têm algumas de suas raízes plantadas nas reações individuais ou coletivas provocadas pelos instintos sexuais. E aí entram em cena os valores éticos e morais, às vezes em conflito com nossos genes...

   Sim, pois além da reação instintiva que faz o homem olhar primeiro o corpo da mulher e a mulher avaliar primeiro a segurança que o homem lhe incute, existe algo que transcende os instintos e paira sobre as reações atávicas... e a essa mixórdia de sentimentos conflitantes que permeiam o relacionamento de um casal chamamos também amor.
   Queiramos ou não, essa é a herança que temos que carregar, homens e mulheres. Vamos carregá-la juntos?

sábado, 1 de janeiro de 2011

Tudo (de) Novo

   Oito horas. Após uma noite bem vivida e mal dormida, acordo para um dia novo de um mês novo de um ano novo. Expulso com relutância a preguiça do corpo e a lassidão da alma. E os pedacinhos que teimam em se grudar em mim, lavo-os com duas ou três mancheias de água fria.
   Sou o primeiro a despertar, mas não o único acordado. Meu neto, o Daniel, tresnoitou; está fazendo suas explorações por mares nunca dantes navegados, no lapitópe da mãe. Mal e mal ouve meu bom-dia, e responde com um distraído aceno de mão.
   Providencio o café. Enquanto a máquina borbulha, engasga e gorgoleja, destilando o líquido escuro e quente, o aroma cálido se espalha pela casa. Aproveito esse tempo para cuidar do Bob, o Dashund hemiplégico cujo universo está limitado aos quatro metros quadrados de varanda que sua corrente lhe permite explorar. Recolho o produto da reciclagem noturna e coloco mais matéria-prima na sua tigela, sabendo que em breve terei que repetir a operação.
 

    Mãos lavadas, saboreio o café, enquanto esquento as turbinas de meu PC. "El Brujo", meu alter ego, consulta sua bola de cristal e alerta:
   - Tá todo mundo dormindo ou de ressaca, ainda. Você não vai encontrar nenhum conhecido na blogosfera a essa hora.
   - Quer apostar? Essa sua bola num tá com nada. Tenho certeza que a Rê já postou matéria nova. E aposto, ainda, que vou ser o primeiro a comentar.
   O PC está pronto. Abro o FireFox e deparo-me com minha primeira tarefa de BIOS no ano: um aviso de que preciso atualizar o navegador.
   Tarefa cumprida, com alguma impaciência, entro finalmente no "blogger" e exulto:
   - Eu não disse? Taí o "Tofora-Todentro"... matéria nova!
   "El Brujo" torce o nariz:
   - Everson Russo? Quem é?
   Não lhe dou muita atenção. Rolo a tela do divã rapidamente, sem nem prestar atenção na matéria, em busca dos comentários - e exulto novamente:
   - Zero comentários! Tás mal, velhote... isso ainda é ressaca...
   Ele fica em silêncio, mas não parece desapontado. Dou de ombros e abro a janela de comentários. Mas paro com os dedos suspensos sobre o teclado: comentar, como? Com que será que aquelas duas-em-uma haviam nos presenteado?
   Releio rapidamente a matéria, e começo a digitar... e as frases vão saindo, e o comentário vai crescendo, e eu cada vez mais nervoso, e "El Brujo" cada vez mais tranquilo...
   Percebo que não vou dar conta desse comentário. Pespego-lhe um "Select all" e um "Ctrl+c"; faço um pequeno comentário, convidando a Rê e a Gina a se darem ao trabalho de virem, por favor, ao "Sete Ramos" para comemorarmos juntos a vitória de meus poderes proféticos sobre a bola fajuta do meu alter ego. Clico em "Publicar comentário" e...
   - Três comentários?!  O meu é só o terceiro?! Mas quem...
   "El Brujo", ainda olhando tranquilamente para o teto, mal disfarça um sorriso zombeteiro.
   - Mas isso não vale! Olha só quem comentou! Foi a Amélia... sabe que horas são, em Portugal?
   O sorriso agora é aberto, e recebeu um "upgrade": de maroto transformou-se em sarcástico.
   Tenho que me conformar com o empate técnico, embora saiba que a vitória moral foi dele... mas temos mais 364 dias de desafios mútuos, este ano; por agora, vamos dar um "Ctrl+v":

- Rê, feliz post novo em um dia novo, de um mês novo, de um ano novinho em folha. E você me parece estar em plena lua-de-mel com você mesma... oi, Gina! As duas rosadas como a Mi, frescas como a Si, perfumadas como a Lu, alegres como o Xi e animadas como só vocês mesmas...
- Everson Russo, hein? Já tinha ouvido falar... e de cara, gostei do cara...  ainda mais com essa amostra-grátis que vocês me trouxeram e com a recomendação em concordância das duas, que adoram discordar.

- Prazer, Everson... a gente já se conhecia? Já vou providenciar mudanças no meu itinerário habitual, para incluir o Livro dos Dias nas minhas visitas periódicas.
- E às duas descobridoras de talentos, parabéns - extensivos ao Tatto - pela pequena obra-prima que abre o post do divã. Casamento perfeito de texto e imagem!

PS: Se algum de vocês tiver trânsito nos subterrâneos do Planalto, por favor avise a algum acólito da nova soberana que eu aproveitei os primeiros minutos do ano para consertar os vazamentos daqui de casa... a nossa querida mãe gentil que se cuide...