terça-feira, 3 de maio de 2011

Os 35 camelos

     Poucas horas havia que viajávamos sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremiz, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de exímio algebrista.
     Encontramos, perto de um antigo caravançará meio abandonado,  três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos.
     Por entre pragas e impropérios gritavam possessos, furiosos:
     - Não pode ser!
     - Isto é um roubo!
     - Não aceito!
     O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava.
     - Somos irmãos - esclareceu o mais velho - e recebemos, como herança, esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos, e a cada partilha proposta, segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio. Como fazer a partilha se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?
     - É muito simples - atalhou "o homem que calculava". - Encarrego-me de fazer, com justiça, essa divisão, se permitirem que eu junte, aos 35 camelos da herança, este belo animal que, em boa hora, aqui nos trouxe!
     Nesse ponto, procurei intervir na questão:
     - Não posso consentir semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o camelo?
     - Não te preocupes com o resultado, ó bagdali! - replicou-me em voz baixa Beremiz. - Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás no fim a que conclusão quero chegar.
     Tal foi o tom de segurança com que ele falou que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que, imediatamente, foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.
     - Vou, meus amigos - disse ele, dirigindo-se aos três irmãos - fazer a divisão justa e exata dos camelos que são agora, como vêem, em número de 36.
     E, voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
     - Deverias receber, meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36 e, portanto, 18. Nada tens a reclamar,  pois é claro que saíste lucrando com esta divisão!
     E, dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:
     - E tu, Hamed Namir, deverias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação.
     E disse, por fim, ao mais moço:
     - E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, deverias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e tanto. Vais receber a nona parte de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado!
     E concluiu:
     - Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir - partilha em que todos três saíram lucrando - couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um resultado (18+12+4) de 34 camelos. Dos 36 camelos sobram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao bagdali, meu amigo e companheiro, outro toca por direito a mim, por ter resolvido, a contento de todos, o complicado problema da herança!
     - Sois inteligente, ó Estrangeiro! - exclamou o mais velho dos três irmãos. - Aceitamos a vossa partilha na certeza de que foi feita com justiça e equidade!
     E o astucioso Beremiz - o Homem que Calculava - tomou logo posse de um dos mais belos "jamales" do grupo e disse-me entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:
     - Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro! Tenho outro, especialmente para mim!
     E continuamos nossa jornada para Bagdá.
     ----------
     Extraí esse conto do livro O Homem que Calculava, de Malba Tahan (Editora Conquista - 1955, tradução de Breno Alencar Bianco). Na página de rosto lê-se:
     Dedicatória
     À memória dos sete grandes geômetras cristãos ou agnósticos:
     Descartes
     Pascal
     Newton
     Leibnitz
     Euler
     Lagrange
     Comte
     (Allah se compadeça desses infiéis)
     e à memória do inesquecível matemático, astrônomo e filósofo muçulmano
     Buchafar Mohamed Abenmusa Al Karismi
     (Allah o tenha em sua glória!)
     e também a todos os que estudam, ensinam ou admiram a prodigiosa ciência das grandezas, das formas, dos números, das medidas, das funções, dos movimentos e das forças
     eu, "el-hadf" cherif
     Ali Iezid Izz-Edin Ibn Salim Hank Malba Tahan
     (Crente de Allah e de seu santo profeta Mafoma)
     dedico esta desvaliosa página de lenda e fantasia.
     De Bagdá, 19 da Lua de Ramadã de 1321.
     Os 35 episódios são contados em primeira pessoa por um bagdali de nome Hank-Tade-Maiá. Os dois primeiros capítulos relatam o encontro dos dois e a história da vida de Beremiz Samir. O terceiro - o caso dos 35 camelos - se tornou um dos mais famosos contos de Malba Tahan.
     E o que me levou a escrever esta matéria?
     Bem, em 6 de maio comemora-se o Dia do Matemático Brasileiro. A não ser os matemáticos, poucos sabem disso. Dia das Mães, Dia do Trabalho, Abolição da Escravatura (por acaso sexta 13, este ano), não deixam margem a uma única homenagem a esse vilão detestado - o professor de Matemática - que inventa armadilhas malignas nas questões das provas e parece ter um prazer sádico em ver seus alunos desesperados.
     Quanto a isso, transcrevo abaixo um pequeno trecho extraído do conto que batizou este "blog" (ver em "Minhas Obras"):
     "O Homem que Calculava é a história de Beremiz Samir, um matemático persa, que viaja de sua aldeia natal até Bagdá. No decorrer da jornada, usa seus conhecimentos para resolver diversos problemas do dia-a-dia, e acaba conquistando um cargo de confiança de um vizir e o amor da filha de um poeta da corte do Califa Al-Motacém. O autor é Ali Iezid Izz-Edin Ibn Salim Hank Malba Tahan, ou simplesmente Malba Tahan, natural de Muzalit, na atual Arábia Saudita.
     Na verdade, esse autor árabe nunca existiu, exceto como pseudônimo - ou melhor, heterônimo -  do professor Júlio César de Mello e Souza, genial matemático brasileiro, que detestava os métodos de ensino vigentes na época. Ele deu vida a Malba Tahan para poder publicar incógnito diversos contos onde os problemas matemáticos, lógicos, filosóficos e até religiosos eram apresentados sob um aspecto lúdico, atrativo e compreensível. (...) Deu verossimilhança ao pseudo-autor árabe através de seu profundo conhecimento da cultura árabe – berço da matemática moderna – e da criação de um segundo personagem fictício: Breno de Alencar Bianco, o suposto tradutor das obras de Malba Tahan.
     "(...) Nasceu no Rio de Janeiro, em 6 de maio de 1895. Lecionou Matemática no Colégio Pedro II, onde alcançou fama por seus métodos pouco ortodoxos. Costumava dizer que os professores de matemática eram sádicos, que se compraziam em inventar dificuldades para os alunos. Seus discípulos o adoravam e seus colegas o olhavam com reservas. Morreu em Recife, no dia 18 de junho de 1974, sem nunca ter posto os pés na Arábia. O dia de seu nascimento é celebrado no Rio e em grande parte do Brasil como o Dia do Matemático."
     Tenho visto nas páginas da Internet explicações fantasiosas sobre os cálculos de Beremiz Samir e as soluções por ele apresentadas. Mas Numerologia, Cabala e Misticismo não combinam com Matemática. A "mágica" de Beremiz, neste caso, foi o resultado de um cálculo simples: 1/2 + 1/3 + 1/9 = 9/18 + 6/18 + 2/18, ou 17/18, que é o mesmo que 34/36.
    Portanto, a soma das frações sendo inferior a um (36/36), haveria sobra de 2/36... os dois camelos que sobraram.
     Perdoem-me os amantes dos mistérios e do misticismo; eu também gosto dessas manifestações do espírito, mas há mais 34 episódios parecidos para vocês curtirem na obra original. E garanto que não estou recebendo comissão.

12 comentários:

  1. - Gente, só agora eu percebi que acidentalmente eu havia bloqueado novos comentários... Perdoem-me.
    - Aproveito então para dar minha opinião sobre o assunto que substituiu na mídia o famoso casamento:
    - Só acho que os Estados Unidos, com todo o seu poderio, deveriam ter capturado vivo o Sr. Osama Bin Laden, para submetê-lo a julgamento perante uma corte internacional, a exemplo do Sr. Saddam Hussein. Do jeito que foi, a semelhança com uma operação policial "especial", onde se busca propositadamente o confronto com o objetivo único de eliminar o bandido em uma troca de tiros, fica evidente. O Sr. Osama, capturado, julgado e certamente condenado - com justiça - seria um mártir de estatura menor para o terrorismo.
    - Mas a besteira está feita. E para completá-la, lançaram o corpo ao mar... e estão aí todos os ingredientes necessários ao endeusamento de um terrorista, às hipóteses delirantes que se multiplicarão na Internet, às manchetes de primeira página e aos roteiros cinematográficos do futuro próximo. Deus nos ajude.

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  2. Nossa eu li esse livro a muito tempo, realmente fantástico quem ainda não leu eu recomendo.

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  3. Caro Barcellos,
    Gostei imensamente de reviver o "O homem que calculava" do Malba Tahan, ele foi o livro que mais me estimulou a gostar de matemática. O truque dos camelos fica bom também dom 17 animais, que, aliás, é o que eu gosto de contar nas rodas de bar para quem não o conhece. Abraços e parabéns pelo belo post.
    PS - Fiquei preocupado quando não consegui colocar comentário quatro minutos depois da tua postagem, ainda bem que a coisa está esclarecida, porque, a princípio cheguei a pensar que você estava acometido de um surto de ranzinzice e não queria mais ver-nos xeretando em teu blog.

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  4. Tudo tem uma explicação!

    Foi Deus que fazeu ocê ponhá pra não comentar...
    Que nikicando eu vi a sua postagem, fiz igual ao Jair, Li e fui logo me posicionando pra comentar! "Só Que".... O meu comentário era da lembrança de uma piada que muito me fez rir dos 10 HallaBabbas que estavam perdidos no deserto e encontraram um camelo pra salva-los... e depois eu conto em OFF se vc não conhece a piada... hehehehe ( É um tikin pesada ).. rss

    Abraços
    Avacagá ao quadrado na hipotenusa.... rss
    Tatto

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  5. Ahhhh... Então! Foi por isso, que não postei a piada... Pois de manhã eu tava que tava e iria postar ( Inda bem que não deu ).... kkkkkkkkkk

    Outros abraços
    KKKKKKKKKKKKKKKKK

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  6. Eu recordo deste livro maravilhoso O HOMEM QUE CALCULAVA de Malba Tahan, que só depois de velho eu descobri ser um ilustre e desconhecido brasileiro!
    Minha homenagem a ele pela sua obra, e a você por lembra-lo.
    Abraços!

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  7. Bacaninha mesmo...quem me dera ter tido a chance de aprender matemática assim...meus cálculos hoje seriam bem mais exatos!
    Beijuuss, Bruxo amado, n.a.

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  8. Eu tive uma paixonite aguda por um professor de Matemática, foi na série em que mais aprendi a matéria. Em compensação, foi a dita cuja que me reprovou no ano em que não me apaixonei...

    Quanto ao assunto que substituiu o casório real, que substituiu a chacina de Realengo... Qual será o próximo?

    Deus se compadeça de nós, pobres idiotas.

    Beijos, bruxo calculador de estrelas.

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  9. São as tantas formas de se aprender pela vida...abraços de bom dia pra ti meu amigo...

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  10. Matemática sempre foi meu tédio..
    Nunca me apaixonei por nenhum professor
    rsrs feito memem , e tantas amigas que
    aprenderam melhor a matéria depois disso...
    E desses outros assuntos estou meio enjoada
    deles , ai fico com preguiça do assunto..
    rsrsrs mas deixo te beijos meus anjo poeta querido!

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  11. - Caros DJ, Jair, Leonel... há coisas que vale a pena relembrar.
    - Tatto, conheço a piada... assim como as do camelo bem atijolado, das "coisas mortas", da patrulha da Legião Estrangeira... e outras que não se encaixam bem no clima familiar que procuro manter no Sete Ramos. Agradeço a sua sensibilidade.
    - Milene, Déya, Regina, Everson... Grato pelo apoio.
    - Abraços a todos.

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  12. Hola Rodolfo,

    me encantó leer lo que nos relatas. Siempre se aprende leyendote...

    Gracias amigo.

    Saludos argentinos,

    Sergio.

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