sábado, 19 de março de 2011

Quinze minutos

     Céu de brigadeiro. O grande quadrimotor voava lentamente, flaps a cinquenta por cento, perdendo altura enquanto circulava em torno de duas pequenas ilhas, perdidas na imensidão azul do Atlântico.
     O coronel Etraud avançou levemente as manetes de aceleração, e o ronco suave dos motores ficou ligeiramente mais audível. O major Pagani verificou a RPM e o torque dos motores. À preguiçosa velocidade de cento e trinta nós, o Hércules estabilizou-se em uma órbita baixa em volta das duas ilhotas, como uma mariposa atraída pela luz.
     O capitão Rabello checou rapidamente cerca de trinta instrumentos, ajustou alguns controles e, satisfeito, recostou-se na sua poltrona para contemplar o incrível panorama que se descortinava através das grandes e numerosas janelas da espaçosa cabine de vôo. Com sua experiência, ele confiava nos pequenos ruídos que se misturavam ao ronco dos motores para alertá-lo sobre qualquer quebra na rotina. O avião falava com ele.
     O tenente Barcellos, o mais novo da tripulação, ainda não conhecia os segredos desse diálogo entre homem e máquina, mas confiava nos companheiros mais antigos, e também desviou sua atenção para o espetáculo paradisíaco.
     No compartimento de carga, os doze sargentos que compunham o grupo de especialistas fizeram uma pausa nas suas atividades de monitoração e teste dos diversos sistemas da aeronave e também se amontoaram junto às vigias redondas de observação.Tinham 15 minutos antes de reassumir seus postos.
     Os que viam pela primeira vez esse panorama estavam mudos e embevecidos. Os poucos "antigões" que conheciam o atol e suas histórias terríveis narravam em voz baixa os episódios macabros, colorindo-os com detalhes fantásticos, conforme lhes parecia mais adequado.
     - Pois é - explicava-nos o sargento Lindolfo, - o navio de apoio encheu o reservatório de água da ilha com óleo diesel, por engano, e zarpou antes que o faroleiro percebesse o que tinha acontecido. Quando o navio voltou, um mês depois, todos tinham morrido de sede - o casal e os dois filhos.
     - É - complementava Bonfim, um segundo-sargento negro como carvão. - Uma noite ele botou fogo na casa, para chamar a atenção de um navio que passava, mas não conseguiu nada...
     - Tá vendo a ilha menor? Chama-se Ilha do Cemitério - dizia Pereira, o instrumentista. Tem mais de trezentos túmulos lá, entre faroleiros, familiares e náufragos!


     Entre fatos históricos e lendas, realidade e fantasia, o que mais me impressionou na época - já se vão mais de trinta anos! - foi o contraste entre o aspecto paradisíaco do atol e as histórias macabras a ele associadas. E muito tempo depois tive oportunidade de confrontar essas histórias com documentos fidedignos.
     Mas mesmo entre esses testemunhos imparciais há algumas contradições. No site
http://galileu.globo.com/edic/93/nossa_terra1.htm
     lê-se:
     "Rocas nunca foi um lugar acolhedor para os navegantes e suas embarcações. Sua primeira vítima foi seu descobridor, o navegador português Gonçalo Coelho, que naufragou por lá em 1883 (Nota: erro do site. O ano correto é 1503). Seu corpo, assim como os de outros náufragos, foi enterrado em uma das duas ilhas arenosas, por isso batizada de Ilha do Cemitério."
     "Já contei 31 âncoras espalhadas pelos recifes e águas rasas - conta a bióloga Maurizélia de Brito Silva, chefe da reserva do Ibama."
     "O primeiro farol foi instalado em 1883. Mas se ele trouxe auxílio aos navegadores, foi um tormento para muitos faroleiros, homens que lá ficavam isolados, com suas famílias, numa época em que a comunicação com o continente era praticamente inexistente. O último faroleiro foi João da Silva Saraiva, que viveu no atol, com a família, no começo do século, e teve morte trágica: seu reservatório de água se esgotou, devido a um vazamento, levando toda a família a morrer de sede. Hoje, o farol é automático e o único testemunho do trágico destino do faroleiro são as ruínas de sua casa e da antiga estrutura da torre."
     E em
http://marbrasileirotocolando.blogspot.com/2010/07/atol-das-rocas.html
     encontram-se as seguintes informações:
     "Entre 1803 e 1890, a história registrou cinco grandes naufrágios de navios. (...) O naufrágio mais famoso dessa época foi o do Duncan Dubar, navio inglês com mais de 100 tripulantes e passageiros a bordo, a maioria emigrantes saídos de Plymouth, Inglaterra, com destino a Sidney, na Austrália. (...) Acabou com o leme destruído e um enorme rombo no casco, na noite de 7 de outubro de 1865, ao se chocar contra os recifes do atol. Homens, mulheres e crianças só abandonaram o navio na manhã seguinte, quando a fúria das ondas já havia destruído também parte do costado. Apinhados nos escaleres, atravessaram milagrosamente ilesos a arrebentação e desembarcaram na areia, onde permaneceram por 10 dias. O resgate só aconteceu graças a um gesto heróico do comandante Swanson, que deixou o atol num escaler, acompanhado de seis marinheiros, seguindo rumo à costa brasileira. Em cinco dias, eles chegaram ao litoral pernambucano e tiveram a sorte de encontrar outro navio inglês, o Oneida. Arriscando afundar por superlotação, o Oneida embarcou todos os náufragos, arruinados, mas vivos, e com eles empreendeu a longa jornada de volta à Inglaterra, sem novos incidentes."
     "Na virada do século, mulher e filhos de um dos faroleiros teriam morrido de sede, porque uma das crianças deixou a torneira da cisterna aberta até secar. O faroleiro, desesperado, ateou fogo na casa, para ver se atraía algum navio, mas o socorro chegou tarde e só ele sobreviveu. Conta ainda a lenda que as almas da mulher e das crianças estariam presas à ilha de sua desgraça e, à noite, assombram os visitantes, pedindo água."
     "Em 26 de junho de 1979, naufragou o Mon Ami, um veleiro de 13 metros de comprimento e dois mastros. Seus tripulantes, três sul-africanos e uma australiana, passaram 21 dias num acampamento improvisado no atol, dividindo as provisões do seu veleiro e a água da chuva com ratos, camundongos, escorpiões e baratas. Apesar dos insistentes sinais de socorro emitidos pelo rádio, dos salva-vidas jogados ao mar com pedidos de ajuda, dos acenos dirigidos a um avião no oitavo dia, os náufragos do Mon Ami só foram resgatados no dia 16 de julho por uma corveta da Marinha brasileira, após a passagem de mais um avião e da comunicação, via rádio, com um petroleiro norueguês, visível no horizonte."


     Os quinze minutos haviam passado. O comandante acionou a campainha  A tripulação voltou a seus postos.
     - Comandante a postos - a voz tranquila do coronel soou no "Public Address". - Tripulação, reportar.
     - Co-piloto a postos!
     - Mecânico a postos!
     - Navegador a postos!
     - Mestre de carga a postos! Tudo amarrado e seguro!
     O coronel avançou as manetes até os torquímetros marcarem 12 mil libras. O ruído dos motores aumentou. O avião ganhou velocidade.
     - Recolher flaps!
     - Flaps recolhidos!
     Ganhando altura lentamente, o quadrimotor fez uma ampla curva à direita e aproou para seu próximo destino - o arquipélago de Fernando de Noronha.

12 comentários:

  1. Sem comentários, é um dos lugares que vou visitar antes de morrer com certeza, junto com Fernando de Noronha.

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  2. Barcellos, a máquina do tempo funcionou bem, hein?
    Lembrei de todos os membros desta missão!
    Mas, que histórias de arrepiar! Um lugar tão bonito com tantas tragédias!
    Excelente narrativa!
    Abração!

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  3. O lugar é lindo de viver... Há viventes que se atrevam ainda a navegar por essas bandas?

    Embora eu conhecesse a sinopse dessa história, gostei de lê-la aqui esmiuçada de forma tão bacana.

    Beijos, querido bruxo avoador.

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  4. Olá Rodolfo,

    lindo o teu texto. Imagino quantas histórias não terás para contar!!!

    Um beijo e bom domingo.

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  5. Oi, amigo!

    Saudade.
    Quanta riqueza de detalhes...amei, amei, amei.
    Amei porque gosto de aventuras, amei porque sua profissão é apaixonante, amei porque sou fascinada por "cases"...
    Por isso, meu amado, você acertou em cheio com tudo isso! Por favor escreva mais.
    Obrigada por elogiar a "imagem casada com a sonata", em meus scraps...e obrigada por me classificar como "canção" nos Botões, em Rainer.
    Você é extraordinário.
    Um grande e afetuoso abraço, maestro!
    Deus o proteja sempre.

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  6. Contados assim, os sinistros acontecimentos tomam um ar de ficção eivada de realidade. Parabéns pela maneira elegante de contar esses fatos e por ter lembrado do velho "gordo" e de companheiros como o Rabello e o Lindolfo que se já se foram.

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  7. Bruxo, amado!
    Venho lá de baixo envolvida pelas musas e embalada na saudade de ler-te...Só mesmo você e seu carinho, amizade verdadeira para minimizar essa travessia. A porta está aberta...só não sei a quem pertence e aonde leva! Então, como disse Clarice "não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento". Viajei com você por esse céu de brigadeiro...aliás, são viagens assim que me alimentam nesses tempos.
    Beijuuss, Rodolfo amado, n.c.

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  8. Ei, meu irmão... essa história eu não conhecia. Como devo desconhecer milhares ainda. Então, como disse a Graça, conte-nos mais.
    Da maneira como vc coloca as coisas, a gente se sente parte da tripulação - ou como passageiro.
    E é uma delícia voar com você.
    Bjus.

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  9. afff, que medo hein RR? Ao mesmo tempo que o cenário é paradisíaco , revela-se um tanto sinistro! Mas olha, gostei imenso da narrativa, e me fez lembrar do Triângulo das Bermudas.

    Ah, e o Tenente Barcellos continua avoando" em nossos céus! Tudibom!

    beijos meu amigo!

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  10. Além de poeta....
    Anjo...
    Além de bruxo...
    Tenente...
    Além de generoso...
    Gentil...

    Adorei ler te assim
    com emoção nas entre linhas!

    Meu anjo poeta querido.
    E que lindo este cenário.

    Beijos meus a vc anjo meu...

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  11. Rumo a Noronha ou a qq canto desse mundo. Quero fazer parte dessa tripulação também.

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  12. Lembro muito bem do final dessa viagem: Vc. chegou carregando um peixe enorme que veio no trem de pouso do Hércules. Mamãe cortou-o em filés que distribuiu entre os filhos. Eu preferi ficar com a cabeça e a carcaça. Sem pretensões, preparei o petisco p/ o jantar e quando ia servi-lo... aparecem tres visitas inesperadas. Resumindo: eu, muito sem graça por estar servindo carcaça e cabeça de peixe, e todos se deliciando. No final a unanimidade: foi o melhor peixe que comemos. Até hoje me cobram quando terá outro igual. Respondo sempre " só quando conseguir outro que venha de Fernando de Noronha no trem de pouso de um Hércules".
    Bjs. meu irmão, e continue com essas reminiscências que nos fazem tão bem!
    Dôra

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