Dezembro de 1961. Faltando uma semana para o Natal, meus irmãos e eu fazíamos planos para arrecadar dinheiro - o suficiente para podermos adquirir ingressos para assistir ao maior espetáculo da época, algo comparável à apresentação de um U2, Rock in Rio ou outro megashow equivalente.
O Gran Circus Norte-Americano anunciava, entre atrações inéditas, uma nova lona de cobertura, em "nylon", capaz de proporcionar um ambiente fresco, mesmo naquele clima canicular. Nenhum de nós sabia o que era "nylon", mas sabíamos bem o que eram trapezistas, saltimbancos, domadores, e os cartazes - os "reclames" - já naquela época cumpriam sua função de aliciar consumidores aos milhares.
Tanto assim que os ingressos haviam se esgotado rapidamente para as primeiras apresentações. Os irmãos, frustrados, resignaram-se a adiar sua aventura para a semana seguinte, e saíram para espairecer.
Naquela tarde de domingo, o Gran Circus pegou fogo. Mais de 300 vítimas (o número subiu depois para cerca de 500), a maioria crianças, pereceram queimadas sob toneladas de lona altamente inflamável ou pisoteadas pela multidão em pânico. E nós, ao chegarmos em casa, fomos recebidos com uma mistura de xingamentos, abraços, lágrimas, puxões de orelhas e beijos, tal como nunca tivéramos antes.
Niterói não se esquecerá daquela semana. Faltavam leitos nos hospitais. Faltavam médicos e enfermeiros. Faltavam macas, ambulâncias, rabecões. Faltavam mesas e gavetões no IML.
Faltavam medicamentos para tratar tantos queimados. Algum iluminado lembrou-se das propriedades fitoterapêuticas da bananeira, e meus irmãos e eu passamos aquela semana cortando folhas, cachos e pedúnculos de bananeiras, abundantes na vizinhança, que eram transportadas para os hospitais, onde as folhas eram usadas como compressas ou lençóis e a seiva como medicamento tópico.
Faltava gelo. Todos os que tinham uma geladeira passaram a semana fabricando gelo para atender à demanda. Mamãe não tinha braços a medir.
Faltavam soros e bebidas hidratantes para os feridos. Minhas irmãs juntaram-se a um grupo de meninas que, num balcão improvisado nas proximidades do Hospital Antônio Pedro, fazia litros e mais litros de laranjada.
Faltavam caixões. O estádio Caio Martins foi tranformado em fábrica de caixões, onde os poucos marceneiros disponíveis trabalhavam vinte horas por dia, orientando voluntários no triste mister.
Faltavam sepulturas. Faltavam coveiros. Faltavam sacerdotes.
Faltavam cemitérios. Esgotada a capacidade do Maruí, foi finalizado às pressas, no município vizinho de São Gonçalo, um novo campo santo - o Cemitério de São Miguel.
Não me lembro de ter perdido algum amigo na tragédia; minha irmã mais velha se lembra da Lenira, que sobreviveu mas ficou com horríveis cicatrizes. Só quando as férias findaram, ao retornar ao colégio, foi que me dei conta, nas conversas com colegas, da dimensão do ocorrido.
O incêndio tinha sido criminoso. O autor agira por vingança, e fora identificado e preso. Era um desequilibrado mental, Adilson Marcelino Alves, que foi misteriosamente assassinado em 1973, logo após fugir da prisão.
O terreno calcinado onde se erguera o circo ficou abandonado durante algum tempo, até que um indivíduo resolveu aproveitá-lo. Plantou uma pequena horta e vivia fazendo a travessia Niterói-Rio e vice-versa, anunciando-se como profeta. Esse homem ficou conhecido mundialmente após inscrever seus ensinamentos nas pilastras dos viadutos do centro do Rio. Sua frase mais conhecida: "Gentileza gera gentileza".
Ainda hoje há quem busque parentes que desapareceram naquele dia. Pelo que sei, alguns restos não identificados jazem ainda no Cemitério do Maruí.
Confira detalhes da tragédia em:
http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=6385
E sobre o valor da seiva da bananeira no tratamento de queimaduras:
http://www.syntonia.com/textos/textossaude/textosfitoterapia/queimaduratratadacombanana.htm
Em dezembro serão passados 50 anos. Como não é ano eleitoral, creio que estaremos razoavelmente a salvo de pronunciamentos hipócritas. Mesmo assim, acho que as autoridades municipais deveriam programar alguma coisa - um memorial ou capela no local da tragédia, uma cerimônia ecumênica e, principalmente, uma tentativa séria de identificar os restos que porventura ainda existam, pelo uso de técnicas mais modernas e com o apoio das pessoas que ainda buscam seus entes queridos, desaparecidos há tanto tempo. Com a palavra, o Sr. Jorge Roberto Silveira.
Com ou sem tais providências, muitos se lembrarão em silêncio, e em silêncio farão suas orações. E depois?
Depois, a vida continua...
poxa que tragédia deu se nessa época em?
ResponderExcluirEu ainda nem nascida era mas já ouvi falar
sobre o assunto , muito triste sim.
beijos meus pra vc anjo poeta...
Essa tragédia é realmente conhecida, teve até um reconstituição do ocorrido em 2008 em um programa da Globo, muito triste com certeza.
ResponderExcluirFoi uma das primeiras tragédias marcantes que acompanhei com grande interesse. Não conseguia entender a maldade de um sujeito "vingar-se" dos ex patrões matando centenas de crianças incineradas, acho que perdi a inocência nesse dia. Belo e importante texto, creio que pode servir de estopim para homenagens aos mortos naquele holocausto. Parabéns mestre Barça.
ResponderExcluirTinha eu só um aninho...que TRAGÉDIA! Me parece que passados tantos anos as "faltas" continuam as mesmas, ou pior, aumentadas vergonhosamente. Não sabia dessas propriedades da bananeira!
ResponderExcluirBeijuuss, Bruxo amado, n.a.
Esta tragédia causou grande impacto até em Porto Alegre, onde eu morava naquela ocasião.
ResponderExcluirRevoltante foi saber que tudo fora provocado intencionalmente!
Anos mais tarde, conheci em Natal um colega cuja esposa fora sobrevivente do incêndio e ainda tinha marcas das queimaduras.
Não há medida segurança que impeça um maluco de perpretar atos como este!
Valeu o resgate deste fato esquecido pelos antigos e desconhecido dos mais novos!
Abraços!
Digo... Alimente-mos os míseros 20% de capacidade mental ativa que temos com o pão da espiritualidade.... Que os outros 80% escondem coisas que jamais compreenderemos....
ResponderExcluirDeusssssssssssskiajude
Tatto
Rodolfo
ResponderExcluirO escrito se fez..evocê nao estava lá...
mas nem por isso deixou de ser menos triste...
beijocas
Loisane
Os loucos são atemporais.Falaremos de tragédias como essa ou como a de Realengo, infelizmente falaremos delas repaginadas.
ResponderExcluirImaginar essa horror todo é agoniante, mas nem se compara com o que viveram essas pessoas e suas famílias.
Beijos, Mestre Bruxo.
"Pegar fogo nunca foi atração de circo"
ResponderExcluirTerceira vez que tento postar meu comentário...
ResponderExcluirPois é, meu irmão. Muita gente esquece, mas quem viveu ou vivenciou essa tragédia jamais vai esquecer...
E ontem mesmo participei, como convidada, de uma solenidade onde a ACAMERJ (Academia de Medicina do Estado do Rio de Janeiro) prestou homenagem a vários médicos, dentre eles um grupo que, na véspera desse dia fatídico, estava no Quitandinha, em Petrópolis, em seu próprio baile de formatura. Ao saberem do ocorrido se reuniram e, mesmo sem qualquer experiência, correram para Niterói para ajudar.
Dentre esses médicos estaavam o Dr. Davi Teles, que foi médico de papai e o Dr. Edgar Alves Costa, responsavel pela cirurgia de Elaina quando ela fraturou o maxilar em tres lugares.
Foi lembrado também a ajuda prestada pelos radioamadores.
E eu lembro bem de papai no rádio, em contato o tempo todo para poder prestar ajuda e nós, pequenos voluntários, percorrendo as ruas para recolher remédios, lençóis, água, colchonetes, etc...
E graças aos radioamadores um médico argentino ficou sabendo da necessidade de ajuda e, junto com sua equipe estava já no dia seguinte em Niterói. Ele, assim como o Dr Ivo Pitangui, na época estavam se aprimorando nas técnicas de cirurgia plástica e tratamento de queimados, e foram de grande valia na situação.
Ambos também foram homenageados ontem - o argentino até ganhou o título de cidadão niteroiense - e se emocionaram demais ao lembrar dos fatos.
E como não podia faltar num evento desses a presença de politicos, foi sugerida a idéia de se fazer uma praça com algum monumento relativo ao fato no local da tragédia. Podemos enviar a Câmara a sua idéia de uma capela ecumenica.
Pois é... lá se vão 50 anos, mas parece que foi ontem...
Ah! sim... para ser justa, tenho que fazer 2 observações:
ResponderExcluir1. o nome do médico argentino que, junto com o Dr. Ivo Pitanguy, ajudou a salvar muitas das vítimas é Dr.Fortunato Benaim;
2. o Dr. Edgard Alves Costa foi, não só o responsável pela cirurgia da Elaina, mas o responsável pelo grande sucesso dessa cirurgia.
Não conhecia sua postagem, mas resolvi entrar para ler. Essas calamidades são logo esquecidas. O que permanece no coração dos que a vivenciaram, não. A dor não tem cura.
ResponderExcluirBjs.