quinta-feira, 4 de março de 2010

O duelo

   Na esquina da Ary Parreiras com a José Botelho, no Vital Brasil, em Niterói, havia outrora um terreno baldio. Ali, há meio século ou pouco mais, ocorreu um duelo de vida ou morte. E eu fui a única testemunha. Eu conto:
   Indo para a casa de meus tios, cortei caminho pela estreita senda que atravessava diagonalmente o terreno, como sempre fazia. Era uma bela manhã de primavera, e eu observava a trilha para evitar alguma cobra, bicho comum na área. Mas deparei-me com algo bem diferente.
   Bem no meio do estreito caminho, uma aranha caranguejeira estava em atitude de ataque - as patas dianteiras erguidas, os palpos abertos, as quelíceras à mostra. Diante dela, uma vespa voejava em rápidos ziguezagues. Com seu corpo azul-metálico brilhando ao sol, parecia uma jóia voadora, e conquistou-me pela beleza.
   Eu sabia que as aranhas eram predadoras de insetos, e preparei-me para intervir no desigual combate, em defesa da minha favorita; mas ela se antecipou, e numa manobra inesperada mergulhou sobre a aranha, cravando-lhe no dorso desprotegido um longo ferrão; fez isso mais duas ou três vezes, e pousou a uma distância segura. Parecia estar aguardando o resultado de seu ataque suicida.
  A aranha estremeceu duas vezes e ficou imóvel.
  - Morreu! - eu disse comigo mesmo.
  A vespa caminhou até a aranha inerte e começou a puxá-la para fora da trilha. Ela era três vezes menor que a aranha, e levou algum tempo até conseguir atingir as touceiras de capim. E desapareceu com sua vítima.
   Fui tratar da minha vida, mas não pude deixar de pensar sobre o combate singular... singular nos dois sentidos.
  Tempos depois, lendo "O Livro da Natureza", de Fritz Kahn, travei conhecimento com os estranhos hábitos reprodutivos das vespas. Fiquei sabendo que algumas atacam artrópodes bem maiores que elas, não para matá-los, mas para paralisá-los. Elas depositam seus ovos no corpo inerte, e estes eclodem em larvas que se alimentam do tecido vivo. O curioso é que essas larvas evitam cuidadosamente danificar os órgãos vitais do hospedeiro; assim, garantem um estoque de carne fresca, até que estejam prontas para completar sua metamorfose como ninfas e crisálidas. Só então abandonam a carcaça inútil.
  Hoje eu sei que a minha bela se tratava de um tipo de vespa da família Pompilidae. Mas não lamento minha ignorância na época; ela me proporcionou três momentos de emoção.
   O primeiro, ao assistir ao embate e transformá-lo, em minha imaginação juvenil, em um épico de capa-e-espada que povoou meus sonhos por duas ou três noites;
   O segundo, anos mais tarde, ao descobrir por Fritz Kahn, que eu testemunhara não apenas uma morte, mas o sacrifício de uma vida em favor de outras.
   O terceiro por ter hoje a oportunidade de compartilhar com você uma experiência única... ou quase única.
   Talvez, se eu me deparasse hoje com uma cena idêntica, tentaria ajudar a pobre aranha a escapar de tão triste destino...
   Há um vídeo em


http://www.youtube.com/watch?v=R38-oaAj3OI


mas não se compara ao evento que presenciei.
   Hoje, no campo de batalha onde se desenrolou aquele épico, ergue-se um espigão de concreto. Lá habitam seres que também lutam, alguns por causas nobres e outros por mesquinharias. Mas a impressão que eu tenho é de que o mundo ficou mais pobre sem aquele terreno baldio...
   As imagens que busquei na internet não fazem justiça ao espetáculo a que assisti. A taxonomia mais próxima que consegui foi:
Reino: Animalia
Filo: Arthropoda
Classe: Insecta
Superordem: Endopterygota
Ordem: Hymenoptera
Sub-ordem: Apocrita
Super-família: Vespoidea
Família: Pompilidae
(Wikipedia)

3 comentários:

  1. Barcellos,
    Eu como menino do interior também tive oportunidade de assistir a esses embates vespas X aranhas algumas vezes, e nunca deixei de me maravilhar. Sei exatamente o que você sentiu: um misto de expectativa e terror pelo inusitado. O ordenamento dos seres na natureza ainda hoje consegue me encantar quando assisto Discovery Channel, imagine a tantos anos atrás quando a inocência dava um tom todo especial aos fenômenos...

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  2. Barcellos, você me fez voltar uns cinquenta e tantos anos atrás.
    Na minha infância, eu passava a maior parte do tempo brincando no quintal e observando os insetos e aracnídeos.
    Em determinada época, minha família foi morar num lugar onde proliferavam escorpiões e aranhas, algumas destas bem desenvolvidas e arrepiantes. Foi lá que eu diversas vezes topei com o tal marimbondo (na maioria das vezes um tipo listrado de laranja e marrom, conhecido no sul como "marimbondo-caboclo"), arrastando aranhas "mortas" que eram bem maiores do que ele. Mais tarde, eu também fiquei sabendo da apavorante prática de paralisar a aranha e deixa-la em estado de hibernação, para servir de alimento para suas larvas!
    Outra coisa que me fascinava eram as formigas. Eu conhecia inúmeras espécies, cada uma delas com práticas diferentes. Eu achava muito curiosa uma espécie pequena e preta que eu chamava de "formiga-coveiro", pois passava o dia rebocando para as proximidades da entrada de seu formigueiro tudo o que era cadáver de inseto que achasse pelo quintal. Também assisti à batalhas mortais entre espécies diferentes. Logo depois, despareciam as duas espécies, e eu ficava sem saber quem tinha vencido!
    Acho que vou pesquisar a respeito!

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  3. Leonel,
    A Pompilidae é uma família que engloba muitas variedades, e acho que o seu marimbondo-cabloco é parente próximo da minha vespa. O mundo dos insetos é fascinante, e eu aposto que você vai se divertir na sua pesquisa. Boa sorte!

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