sábado, 22 de outubro de 2011

Público-alvo

O poeta é um fingidor;
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa


Existe um nexo entre o que se sente, o que se escreve e o que se acredita. Nem sempre é um liame de causa e efeito; na maioria das vezes, é uma relação de interdependência.
Feliz aquele que escreve o que sente e sente o que acredita, pois só assim poderá acreditar no que escreve. E esse círculo virtuoso é a própria alma da palavra escrita!
Escritores - e, principalmente, poetas, cronistas, contistas e ficcionistas em geral - lançam mão, naturalmente, de metáforas e alegorias - figuras de pensamento que se afastam da realidade do nosso prosaico dia-a-dia. O escritor de ficção não mente, pois tem a intenção declarada de entreter e espicaçar a imaginação do leitor; mas é fácil extrapolar aí os recursos estilísticos e cair no exagero que causará um mal-entendido ou uma interpretação equivocada por parte do leitor ou do ouvinte incauto. Lembram-se da famosa transmissão radiofônica de "Guerra dos Mundos", de H. G. Wells? Boa parte da população da Costa Leste dos Estados Unidos acreditou que a invasão alienígena era real e houve casos de pânico coletivo.
Um poema de protesto, como "O Navio Negreiro", sempre parecerá mais próximo da realidade que um poema de amor, sejam do mesmo poeta ou de poetas diferentes. Isso porque um visa obter uma reação ativa num público engajado e o outro destina-se à introspecção da alma. O primeiro é para ser declamado em palanques ou em praça pública, e o segundo será lido num ambiente aconchegante e silencioso, perante um público pequeno - que pode perfeitamente incluir alguns dos que estavam naquele comício, aos gritos de "apoiado!"
Prefiro, sempre que posso, usar palavras e expressões simples nos meus rabiscos. Sim, já houve época em que meu escrever era mais rebuscado, mais petulante, mais exibicionista, mais pernóstico, mais pedante. Serviu para engordar-me o ego e emagrecer a lista de meus leitores. E também para enriquecer o vocabulário de meus textos e empobrecer-lhes a inteligibilidade com seu exibicionismo preciosista (olha aí meu velho pecado! mas vocês entenderam, não é? não? deixa pra lá...).
É importante manter o foco no chamado "público-alvo". Escrever uma dissertação acadêmica não é escrever uma crônica. Um artigo informativo não é uma coluna social. Um conto não é um poema. Um romance não é uma fábula. O manual de seu micro-ondas não é uma cartilha de alfabetização. E se eu quero escrever para crianças usarei um vocabulário que elas entendam e evitarei frases longas.
Como "público-alvo" entenda-se também os apreciadores de estilos diversos, sejam mais exóticos ou mais tradicionais, e tantos outros que buscam exprimir, num dialeto próprio, suas verdades peculiares. Mas "público-alvo" é uma expressão enganadora. Cada um de nós faz parte de diferentes "públicos-alvos", em diferentes momentos...
Talvez o maior desafio para um escritor multidisciplinar seja manter uma disciplina de estilo adequada a cada caso, sem cair na mesmice ou ferir aquele círculo virtuoso que alimenta a autenticidade e a fé do texto escrito. Porque a "verdade" em um poema usa  roupas que não caem bem num artigo científico, embora possam vestir com bom gosto uma crônica.
Aliás, sinto-me agora como um peixe fora d'água. Cá estou eu, um pedreiro esforçado - talvez um bom mestre-de-obras - discorrendo sobre a arquitetura de palácios e catedrais. Que me perdoem os literatos - os arquitetos que me ensinaram a bem misturar a argamassa das palavras. E estas que aqui exponho têm como público-alvo os aprendizes de pedreiro, e não os engenheiros experientes.
Quanto a textos de propaganda, escritos de fundamentalistas e fanáticos religiosos, discursos de políticos e algumas obras de "ghost writers"... desculpem. Talvez em outra ocasião. Os círculos deles costumam ser de outro tipo. Não cabem aqui.

22 comentários:

  1. Nesse mundo das nomenclaturas e rótulos me perco inteira. Mas concordo contigo que usar a linguagem mais simples é o meio mais eficaz de atingir as pessoas. Antes eu também entrava numas de arrumar palavras rebuscadíssimas para "enfeitar" meus textos, mas depois me dei conta da absoluta tolice desse meu ato.

    O bom é deixar as palavras se acomodarem do jeito que querem. Elas certamente sabem por onde caminhar.

    Beijo, senhor bruxo poeta e cronista.

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  2. Rodolfo!

    Você está completamente certo, meu caro amigo!!
    Lembro-me de quando o Jair convidou-me a conhecê-lo (em tempos idos de 2009, acho...sou uma das suas primeiras amigas per-seguidoras...) fiquei completamente sem saber como comentava em seus textos, não porque não os compreendia, mas porque eram escritos de forma realmente rebuscada demais, e eu precisava de um tempo maior para responder à altura deles...
    Lembro-me também de quando você me buscou pela mão para comentar um texto seu referente a José de Alencar...e me pediu um auxílio, se eu conhecia algo mais(não me pergunte sobre o quê: exatamente isso, eu não lembro!), mas enfim, demorei uns três dias (rs) para comentar com presteza, pode uma coisa dessas??..rs
    Hoje, não.
    Hoje, teus textos são deliciosos, continuam com a mesma qualidade e profundidade do início, e facilitam a interação com toda espécie de intelectualidade: quem conhece o assunto, comenta. Quem não conhece, comenta. Quem sabe "muito" sobre ele, comenta. Quem desconhece inteiramente, comenta também!
    Não fica três dias ensaiando..rs
    Isso acontece, devido a seu maravilhoso "feeling", Rodolfo, que depressa "captou nossa mensagem" e detectou a melhor estrada para continuar trilhando nessa esfera bloguística...!
    Um grande abraço, continue nessa sua linha, que estou certa de ser a melhor para os dias de hoje!! E para todos. Você só teve e tem a ganhar!
    PARABÉNS!

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  3. Barcellos, me fizestes recordar um advogado português, muito formal, que era também meu professor de Filosofia na UNICAP. Comentando na classe uma dissertação que eu fizera, ele me elogiou(?), dizendo que "usando uma linguagem chã, eu me fizera entender de forma concisa e objetiva". Achei que esse "chã", seria relativo a chão, ou coisa rasteira, linguagem de povão!
    Acho que até os esnobes tem que dar um ponto para quem consegue se fazer entender pela maioria, sem, é lógico, agredir a "última flor do Lácio", a nossa língua portuguesa!
    Apenas discordo um pouquinho quando dizes que um poema de protesto "...sempre parecerá mais próximo da realidade que um poema de amor..."
    Neste caso, acho que depende de quem o lê ou o escuta. Aguém apaixonado talvez ache o poema de amor mais real do que tudo.
    Mas, de qualquer forma, teu post foi excelente!
    Abraços, amigo!

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  4. R.R.Barcellos,

    Simplesmente Ma-ra-vi-lho-so!
    Demais teu Texto!
    Sem "Por quê?" e nem "Porque"...Inteligível.
    Se me permites, gostaria de levar teu texto para a sala de aula e mostrá-lo aos alunos.[com as devidas referências, lógico]
    Abraço,
    Sandra,

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  5. Barcellos,
    Você conseguiu resumir aquilo que muita gente (inclusive eu) quer dizer e não sabe. Eu me vejo como um artesão das palavras, não sou escritor, cronista, ensaísta ou outro "ista" qualquer. Também não tenho a habilidade de escrever para públicos alvos diferentes, meus textos não tem um estilo, se é que isto existe. Já iniciei um conto infantil que está nos primeiros capítulos ainda, não sei me comunicar com crianças por escrito. Isso quer dizer que tenho tudo para aprender ainda. Acho que tua postagem serve muito bem como orientação para mim, obrigado, JAIR.

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  6. Talvez porque eu não tenho estudos e nem sei o significado de muitas palavras eu gosto de quem escreve como o amigo. Quantas vezes entro num blogue, leio um texto duas ou três vezes e não o entendo. E olhe que eu sou persistente. Mas não dá. Outras vezes, eu leio, entendo, mas não sei como comentar. E quando assim é, não comento mesmo.
    Um abraço e bom fim de semana

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  7. Você sabe, acho eu, que comecei o divã para tratar de assuntos da clínica num linguajar acessível para aqueles fora da área. Missão, quase, impossível! Transformar as palavras, teoria, sem perder o rigor técnico. Por questões várias, caminhei e ainda por outros trajetos. Como leitora, gosto de tudo que me toca a alma, de uma maneira simples sem, necessariamente, ser simplista. Faz tempo - com meus professores - aprendi: aquele que mais sabedoria possui é o que melhor transmite seus conhecimentos... Dispensando rebuscamentos e termos de difícil compreensão, para "comprovar" sua erudição. Fiquei feliz em ler essa sua constatação e mudança das "linhas" escritas (percebi há algum tempo). Pq eu daqui, sigo sendo uma desse seu público-alvo só crescente.
    Beijuuss, amado, n.a.

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  8. Não conheci seu escrever "rebuscado, petulante". Quando encontrei seu espaço, li palavras harmoniosas, vi sensibilidade e encanto. Um encanto que permanece em cada comentário que faz nos blogs e que é tão pessoal, direcionado, perfeito.
    Ainda que eu desejasse, não conseguiria me expressar com palavras "buscadas", que pudessem dar a ilusão de enriquecimento a qualquer verso.
    Gosto de entender o que leio, na primeira passagem do olhar. Só assim vou me identificar e sentir a mensagem. E quando escrevo, eu o faço sem rascunhos, sem análises, como sempre procedi, na vida profissional. Lá, tudo era analisado antes, de forma que, ao passar para o papel, o objetivo e fundamentos encontravam-se perfeitamente definidos.
    Meus versos são simples, talvez repetitivas as emoções, mas eu os coloco nas postagens, sem prévia construção ou policiamento. Até acabo percebendo, depois,
    que deveria ter substituído uma ou outra palavra. Mas já foi... e deixo.

    Você escreve lindamente e comenta poeticamente.
    Agrada a todos, gregos e troianos, pois caminha entre eles com expressividade e segurança.

    Vou me permitir citar uma frase que considero excelente:
    "Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores" – Mário Quintana

    Amei o texto!

    Bjs.

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  9. Oie..

    Eu gosto do me toca. Do que me toca o coração.
    Depende o meu momento ...eu sinto de um jeito.

    As vezes eu me sinto timida diante de um texto
    mais compleco, com figuras de linguagem que não consigo decifrar.

    Mas eu admiro mesmo assim..fico até parada diante dele..leio uma, duas, tres vezes..
    Acho belo como acho um quadro abstrato.

    Neste caso..o meu entender é subjetivo.. e leio muitos comentários também "rebuscados".

    Fico timida..as vezes saio de fininho...sem comentar.. mas não pq não gostei..pq não tive coragem de dizer..
    "lindas figuras, lindas metaforas", mas eu não entendi.... mas algo me tocou..só não sei colocar em palavras..

    Bj....

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  10. Bom dia amigo!
    Importantes considerações sobre a escrita. A escrita tem mesmo alma e nos move, comove, mata e faza nascer...o poder da palavra Barcellos. A alma da palavra escrita é mesmo poderosa quando usada de forma simples e verdadeira.

    Beijos e obrigada!

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  11. Bom domingo meu maracujá de gaveta!
    Gosto do sentimentalismo na hora de escrever,e faço deixar levar nas palavras ...
    Bjs de dia de domingo!

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  12. Rodolfo,passei para agradecer sua gentil poesia no blog da Milla pelo meu aniversário e dizer que postei no meu blog junto aos meus amigos de tanto que gostei!Muito obrigada de coração!Não sou nenhuma literata,mas escrevo o que me vai na alma tb!Muito legal seu texto!Bjs,

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  13. Caro Rodolfo. A relação entre o escrevinhador e o leitor é tão estreita que, se nos utilizarmos de termos coplicados, pedantes e de difícil entendimento, ele não saberá ao certo o que o poeta quis expressar. Eu tb sou adepta do palavreado simples, sem samaleques, que possa atingir o coração e a inteligencia de quem me lê.
    Parabéns pelo expressivo texto. Amigo, obrigada por seus versos que deram um toque de ternura aos meus posts. Publiquei ambos: o primeiro, para meu texto OBSTINAÇÃO e, agora, o segundo, para o aniversário de Anne Lieri. Obrigada do fundo de meu coração e, olhe, as portas estarão sempre abertas para sua poesia. Grande abraço e ótimo fim de noite.

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  14. Passando para agradecer a poesia que me deixou na ISA e as palavras de carinho, e adorei o que se escreve aqui.
    Tomei a liberdade de seguir, para voltar com mais tempo.

    Um abraço
    Sonhadora

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  15. "Feliz aquele que escreve o que sente e sente o que acredita...", perfeito, concordo em absoluto. A sua maneira de escrever cativa-me.

    um abraço
    oa.s

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  16. Gosto de ser livre na escrita,verdade que a alma as vezes revela mais que o devido,mas,pelo menos conquisto amigo tão querido como tu!!Te adoro beijão!

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  17. RR, caríssimo, esse é um texto/relíquia, daqueles que se guarda na gaveta do criado (que é mudo), ufa... Que bom! rs... Assim podemos ler e reler na quietude da noite ou mesmo na mansidão das manhãs.

    Tu és remanso na tempestade,e calmaria no vendaval. Posto que tua verve sempre surpreende, em qualquer estado.

    Eu to aqui, (de novo), relendo essa manifestação cultural de RR, um trovador que virou poeta e que se transforma em romancista , escrevendo rosas para a serenata.

    Obrigada por esse momento!
    FANTÁSTICO!
    Meu afeto
    bj nas mãos

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  18. OI RR BARCELOS!
    CONCORDO PLENAMENTE CONTIGO,TEXTOS COM PALAVRAS REBUSCADAS,AS VEZES FAZEM COM QUE O LEITOR INTERROMPA A LEITURA POR CHATEAR-SE.
    ACHO QUE O MÉRITO ESTÁ EM CONSEGUIRES COM POUCAS E SIMPLES PALAVRAS DIZER TUDO, E DE MANEIRA INTELIGÍVEL.
    QUANTO A SER ENTENDIDO,ACHO LEGAL QUANDO MESMO TEU TEXTO SENDO DE FÁCIL ENTENDIMENTO, ALGUÉM ACHAR UMA NOVA INTERPRETAÇÃO,A PESSOA CAPTOU UMA MENSAGEM QUE NEM O PRÓPRIO ESCRITOR SE DEU CONTA QUE A PASSOU, ISTO ME ESTIMULA.
    JÁ VIM OUTRAS VEZES AQUI.
    GOSTARIA QUE ME VISITASSE.
    http://zilanicelia.blogspot.com/
    ABRÇS

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  19. Comecei meu viver como um escape
    pra que minha alma se aquietasse.
    Tudo que tem lá sou eu.
    Escrevo o que sinto, e sinto
    tudo que acredito...

    beijo meu pra vc anjo poeta...

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  20. Muito interessante.
    Eu estou conhecendo agora o seu modo de escrever, e gostei muito do que tenho lido.
    Os comentários então nem se fala! Sempre gostei, pois tem sempre aquele humor perdidos nas palavras de uma forma envolvente.

    Quanto à mim, sempre gostei de escrever e ler deste modo que você falou... Escrever de uma maneira bem simples, onde poderemos atingir à todos.
    Quando pego um livro para ler e o encontro mastigável, eu me delicio! Dá muito prazer. Do outro modo me causa muito nervoso... Esta coisa de ler com um dicionário do lado, tendo de parar a leitura para verificar o que significa uma palavra, depois duas, depois três, e quinhentas, não tem como apreciar o que lê ou sorri no meio da leitura.
    Sorri quando o escritor escreve algo que tem tudo haver com o nosso modo de pensar. Lendo assim a gente vai parar para outra coisa!
    A gente vai parar para dizer: Nossa, eu também sou assim, eu também penso igual a ele, Eu também desejei isto, eu também sonhei um dia a mesma coisa que ele... Nossa como sou igual a ele!
    Claro que de vez em quando é bom ter cartas nas mangas, assim poderemos dar aquela boa impressão do saber.

    Adorei o seu comentário lá no meu texto "Para Quem Sabe Ler Dois Pingos é Letra."
    Eu no início não queria mostrar a revelação... Achei que teria de ser o leitor a criar em seus pensamentos a conclusão e ver se ele era mesmo assim tão inocente.
    Depois decidi mostrar e pensei:
    "Ele foi preso, está anos tentando mostrar uma inocência e não consegue. Algum motivo teria... Por isto optei a um julgamento, pois em um julgamento existirá pessoas que não conseguem ver a verdade em tudo aquilo que ele falou, vai querer provar. Nada melhor que um promotor... Pensei."

    Achei tremendo de interessante o seu projeto e te dou todo o incentivo para criá-lo, pois daqui eu fiquei muito curiosa de ver como seria este ser de duas caras... e melhor ainda, parte homem, parte mulher, rsrsrs
    Beijos

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